segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sobre o Classicismo






(1527-1580)

Quando Gil Vicente encenava a derradeira peça (1536), já ia alto o decisivo processo histórico que levou o povo português a posições jamais alcançadas, antes ou depois: o Renascimento. Antecedeu-o e preparou-o um movimento de cultura que agitou as últimas décadas da Idade Média: o Humanismo, caracterizado pela descoberta dos monumentos culturais do mundo greco-latino, de modo particular as obras escritas, em todos os recantos do saber humano, e por uma concepção de vida centrada no conhecimento do homem, não de Deus.

A descoberta, decifração, tradução e anotação desse rico espólio de civilização e cultura, parcialmente esquecido ou confinado em conventos durante os séculos medievais, seguiu-se o desejo de fazer ressuscitar o espírito da Antiguidade Greco-Latina. Tal estado de coisas, ligado às comoções próprias do tempo (descobertas científicas, invenções, a Reforma luterana, etc.), veio a constituir-se no Renascimento.

As circunstâncias históricas e uma peculiar situação geográfica confiaram ao povo lusitano um papel de superior relevo na evolução do Renascimento. É que Portugal, através de alguns estudiosos e, particularmente, das descobertas marítimas, vai colaborar de modo directo e intenso no processo renascentista: letrados portugueses, como os Gouveias (André, António, Diogo), Aquiles Estaço, Aires Barbosa, e outros, disseminavam as novas ideias em universidades estrangeiras, entre elas a de Paris.
Todavia, foi o alargamento dos horizontes geográficos, com sua corte de consequências económicas e políticas, que conferiu ao povo português primacial importância histórica no período que vem desde os fins do século XV até meados do século XVI.


Com efeito, a descoberta do caminho marítimo para as Índias, empreendida em 1498 por Vasco da Gama, seguida pelo "achamento" do Brasil em 1500, cercou-se duma série de semelhantes e felizes cometimentos, que permitiram a Portugal gozar de momentânea mas intensa euforia, sobretudo enquanto reinou D. Manuel, entre 1495 e 1521:
conquista de Ormuz, em 1507, de Safira, em 1508, de Goa, em 1510, de Azamor, em 1513, a viagem de circum-navegação realizada por Fernão de Magalhães, em 1519-1520, etc. Sobrevém uma extraordinária prosperidade económica: Lisboa transforma-se em centro comercial de primeira importância; na Corte, impera um luxo desmedido, a Maioria acredita cegamente haver chegado Portugal a uma inalterável grandeza material.

Enfim, enganador e iludidor optimismo ufanista, que aos poucos se vai atenuando, até à derrocada final em Alcácer-Quibir, em 1578, quando morre D. Sebastião e o exército português se dobra, fragorosamente vencido, à malícia e ao poderio da cavalaria sarracena.

A actividade literária reflecte essa atmosfera de exaltação épica e desafogo financeiro que cruza as primeiras décadas do século XVI, mas não deixa de reflectir também o desalento dos lúcidos perante a dúbia e provisória superioridade (a fala do Velho do Restelo e o epílogo d’ Os Lusíadas constituem índices do pensamento duma minoria consciente do perigo que ameaçava a Pátria).

Foi no ímpeto revolucionário da Renascença, e como desenvolvimento natural do Humanismo, que o Classicismo invadiu as consciências, pois correspondia literariamente ao geral e efémero complexo de superioridade histórica. Ao teocentrismo medieval vai opor-se uma concepção antropocêntrica do mundo, em que o "homem é a medida de todas as coisas", no redivivo dizer de Protágoras.

Ao teologismo de antes contrapõe-se o paganismo, fruto duma sensação de pleno gozo da existência, provocada pela vitória do homem sobre a Natureza e seus "assombramentos": não mais a volúpia de ascender para as alturas, mas sim de estender o olhar até os confins da Terra. O saber concreto, "científico" e objectivo, tende a valorizar-se em detrimento do abstracto; notável avanço opera-se no campo das ciências experimentais; a mitologia greco-latina, esvaziada de significado, passa a funcionar apenas como símbolo ou ornamento; em suma: o humano prevalece ao divino.

Em 1527, depois de ausente seis anos, Sá de Miranda regressa da Itália, onde contactara com estudiosos peninsulares impregnados das novas ideias, levando algumas delas para Portugal. Introduziu, ou colaborou para introduzir o verso decassílabo, o terceto, o soneto, a epístola, a elegia, a canção, a ode, a oitava, a écloga, a comédia clássica (escreveu Os Estrangeiros em 1526). Tornou-se o principal divulgador do Classicismo, mas o papel de teórico do movimento coube a António Ferreira, mais adiante referido.


Estando o solo preparado desde há muito, pouco demorou para alcançar pleno êxito o empenho de Sá de Miranda em atingir os espíritos com as novidades estéticas de origem italiana. Desse modo, os ideais clássicos predominam em Portugal até à morte de Camões e à passagem de Portugal para o domínio espanhol, em 1580. (Podia-se dizer que vigoram até o século XVIII, sob formas diversas, paralelas, quando não antagónicas ou incongruentes.)

O Classicismo consistia, antes de tudo, numa concepção de arte baseada na imitação dos clássicos gregos e latinos, considerados modelos de suma perfeição estética.

Imitar não significava copiar, mas sim a procura de criar obras de arte segundo as fórmulas, as medidas, empregadas pelos antigos. Daí a observância de regras, estabelecidas como verdadeiras antes da elaboração da obra literária: os escritores não tinham mais que observá-las, acrescentando-lhes a força do seu talento pessoal. Eram regras apriorísticas, mas não impediam o despertar e a manifestação das qualidades peculiares de cada um.


As demais características decorrem dessa obediência a regras e modelos pré-estabelecidos. A arte clássica é racionalista por excelência: "Haja a Razão lugar, seja entendida", como afirma António Ferreira (Carta X, a D. Simão da Silveira).

O racionalismo clássico não significa de modo algum ausência de emoção e sentimento, apenas pressupõe que a Razão exerça sobre eles uma espécie de controle, de policiamento, a fim de evitar que se derramem. Estabelece-se, ou deseja-se, um equilíbrio entre Razão e imaginação, no afã de criar uma arte universal e impessoal. Todavia, a universalidade e a impessoalidade implicavam uma concepção absolutista de arte: esta, deveria expressar verdades eternas e superiores, na medida em que se aproximassem dos arquétipos aceites, quer dizer, os modelos greco-latinos.

Daí vem que os clássicos renascentistas (a rigor, são neoclássicos) procurem a Beleza, o Bem e a Verdade, com maiúsculas iniciais, em virtude dessa concepção absolutista e idealista de arte. Percebe-se por isso que os clássicos atribuíam à arte objectivos éticos, identificados com o Bem e a Verdade. Embora não entendessem que a arte fosse utilitariamente empregada para fins de instrução moral - o que seria rebaixar-lhe a categoria -, estavam longe de aceitar a "arte pela arte" ao modo parnasiano (fins do século XIX). Um alto objectivo ético - o do aperfeiçoamento do homem na contemplação das paixões humanas postas em arte (a catársis dos gregos) -, é o que tencionavam alcançar com suas obras.

Isso tudo significava conferir à inteligência um superior papel na compreensão do Cosmos: o clássico quer-se intelectual antes de sensitivo, com a inteligência voltada para fora de si, para o Cosmos, e não para dentro, na escavação do próprio "eu".

O clássico procura entender a impressionante harmonia do Universo, e dela participar, utilizando o único meio possível para isso, a Razão ou- a inteligência. É a estética do Cosmos, em contraposição à do romântico, - que, como se verá na altura própria, defendia uma arte que lhe exprimisse o microcosmos, quer dizer, o seu "eu" interior.

Constitui natural corolário o culto extremado da forma: os clássicos são formalistas, no duplo sentido de aceitarem os modelos pré-estabelecidos e de valorizarem a suprema per-feição formal em prosa e em poesia: logicidade na ordenação do pensamento, limpeza e vernaculidade gramatical, rigor no que toca ao ritmo, à cesura, à estrofação, à ordem interna do poema, etc. Imitam-se os torneios sintácticos dos antigos, mas sem perder de vista o carácter próprio da Língua: numa espécie de "defesa e ilustração da Língua Portuguesa", os clássicos preconizam ardorosamente a pureza da linguagem. Como diz António Ferreira, na Carta III, a Pero de Andrade Caminha: "Floresça, fale, cante, ouça-se, e viva./ A Portuguesa língua, e já onde for/ Senhora vá de si soberba, e altiva."

Para melhor compreensão da época clássica em Portugal, é preciso levar em conta que, em paralelo com a cultura europeia do tempo, o espírito medieval não foi totalmente abando-nado. Em contrário. sisa presença se faz sentir de modo patente, lado a lado com as novas ideias: o século XVI português constitui uma época bifronte, justamente pela coexistência e não raro interinfluência das duas formas de cultura, a medieval e a clássica. Do ângulo da expressão poética, a primeira seria a "medida velha", e a segunda, a "medida nova". Tal bifrontismo é lugar-comum nos escritores quinhentistas portugueses, cujas aparentes contradições só podem ser entendidas quando se considera a ambivalência cultural da época.
Explica-se a dualidade quinhentista do seguinte modo: para alguns homens, moldados dentro do espírito medieval ainda vigente, não era fácil aceitar de pronto e integralmente a nova moda.

Em consequência, só lhes restava a tentativa de assimilar o novo ao velho, for-mando um rosto de dupla face: uma, olha para o passado medieval, outra, para o clássico, fundindo-o com a atmosfera trazida pelas descobertas e pelas invenções. Doutro modo, não se compreende como a novela de cavalaria, medieval por excelência, tenha alcançado seu ápice e tivesse sido cultivada com apaixonante interesse precisamente no século XVI.

Mais ainda: as notas medievais quinhentistas contem um impulso que se tornará presente, subterrâneamente ou não, ao longo de toda a Literatura Portuguesa, cruzando os séculos e fazendo-se tradição. Ao correr das épocas e períodos literários, o lirismo tradicional, caracterizado por ser antimetafísico, popular, sentimental e individualista, dialogará sempre com as novas modas, e sobreviverá: a própria força da terra Portuguesa, chamando os escritores para o seu convívio, explica a permanência desse remoto lirismo no curso dos séculos.

As novas "formas" literárias introduzidas pelo Classicismo logo foram aceites, entre outras razões porque, sendo notadamente poéticas, vinham corresponder às mais íntimas preocupações do português letrado quinhentista. De qualquer modo, vá-se fixando desde já que as formulações poéticas são fácil e espontaneamente assimiladas pelo português, ao passo que as novidades da prosa romanesca custam a deitar raízes fundas e produzir obras de imediato e relevante sentido. Entende-se, assim, que a época do Classicismo apresente um grupo notável de poetas, encimado por Luís Vaz de Camões, e que a poesia se coloque à frente das outras manifestações literárias coevas, muito embora estas, em sua específica área de acção e interesse, hajam atingido por vezes nível de primeira grandeza.

Aliás, diga-se de passagem, os teóricos antigos (como Aristóteles e sua Poética, e Horácio e sua Epístola aos Pisões) autorizavam e estimulavam o ardor posto na criação de poesia, fazendo em suas doutrinas tábua rasa da prosa, por considerá-la menos nobre que a poesia.

Decorre disso que o Classicismo português se abre e fecha com um poeta: Sá de Miranda e Camões. Numa visão de conjunto, este último é o grande poeta, enquanto os demais se colocam em plano inferior, naturalmente ofuscados pelo seu brilho. A explicação do facto reside na circunstância de que todos eles eram poetas de menor talento e de haverem tomado muito ao pé da letra os postulados clássicos.

Imitaram, copiaram os antigos friamente, sem acrescentar-lhes novidades nascidas da experiência ou dos privilégios pessoais, sensibilidade, inteligência, etc. Faltava-lhes o sopro mágico que ilumina a aceitação dos axiomas estéticos; por isso, carecem de grandeza suas criações. Estas, reduzem-se a exercícios de arte (= eloquência) a que está faltando o engenho (= talento): a reunião de ambas resulta bem, mas a primeira sem a segunda consiste no trabalho artesanal destituído de "inspiração".

De passagem, lembre-se de que Camões conta com sua ajuda no prólogo d’Os Lusíadas ("Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me ajudar engenho e arte"), pois conhece que ambos devem estar indissoluvelmente associados para que o intento poético alcance vingar. Os poetas menores do tempo agarraram-se às regras clássicas como se bastasse conhecê-las e aplicá-las para conseguir criar arte. Careciam de compreender que os cânones deviam ser usados apenas como meio de expressão de sua mundividência (necessariamente existente na base de todo artista, peque-no ou grande), e não como válidos por si próprios.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

João de Deus




Intelectual pouco curioso, com uma concepção de vida tradicional moldada no seu catolicismo popular, animada pela sua bondade e sensibilidade inatas, João de Deus tinha, contudo, o sentido dos recursos de expressão poética mais permanente no idioma: a sua lírica amorosa e a sua sátira conservam-se muito mais comunicativas do que o sentimentalismo ultra-romântico e a poesia panfletária sua contemporânea.

Filho de um pequeno comerciante de S. Bartolomeu de Messines, João de Deus Ramos (n. 1830-03-08 - f. 1896-01-11) distinguiu-se em Coimbra, durante os dez anos em que fez a sua formatura (1849-59), por uma série de dons que o tornavam indispensável aos companheiros: o jeito para desenhar, para tocar viola e para improvisar líricas de gosto popular e sátiras estudantis. Já então, como sempre, eram os amigos que tratavam de escrever, seleccionar e publicar os versos que cantava ou ditava de cor.

Depois de formado, tentou vida de advogado e de jornalista em Coimbra, Beja, Évora e, depois, Lisboa. Recordemos que em 1863, n' O Bejense, criticava Castilho. No meio de difíceis condições monetárias, que o obrigavam a aceitar trabalho de costura e a escrever versos pagos de encomenda, é à diligência de amigos e admiradores que deve, em 1869, duas surpresas: uma eleição para deputado e a edição da sua primeira grande colecção de poesias, Flores do Campo . Por solicitação de um livreiro, dedica-se depois à preparação da sua conhecida Cartilha Maternal, que se publica em 1876.

Inicia-se deste modo a sua carreira de pedagogo, que lhe acarretou sérios desgostos até ao fim da vida, fazendo-o reagir com polémicas e sátiras, mas que também lhe valeu em 1895, a poucos meses do falecimento, uma das mais entusiásticas consagrações públicas de que foi alvo um escritor português. Em 1893, Teófilo Braga, um dos seus mais fervorosos admiradores, editava-lhe a mais completa colecção de poemas, o Campo de Flores, que em breve se esgotou, exigindo uma reedição que se seguiu de perto ao seu memorável funeral nacional.

O hábito de improvisar à viola variantes musicais e poéticas do cancioneiro popular e estudantil, de versificar para música, de trabalhar os seus poemas de cor e auditivamente, deve ter contribuído para que João de Deus nos deixasse uma série de poesias de tão simples e pura expressividade rítmica.

O seu dom lírico, e também satírico, revela-se pela capacidade de regressar à expressão mais directa dos sentimentos, à expressão infantil ou feminina. Os seus poemas são feitos do material mais comum da língua: repetições, exclamações, anacolutos, um vocabulário correntio e um teclado restrito mas universal de imagens, que ele, às vezes, percorre enumerativamente: a flor, a ave, a pérola, a estrela, a lua, o céu, a luz, a fonte, o vento, a nuvem, o perfume... De tão simples recursos ou não se faz nada ou faz-se uma poesia que resiste como a do património oral das nações.

É isto o que acontece com João de Deus: se o julgarmos pelos seus melhores poemas, nenhum dos poetas seus contemporâneos tem uma fala mais moderna que ele. A sua poesia repele qualquer declamação pretensiosa; as inflexões de voz que ela nos pede estão no ouvido, são as inflexões das crianças e da gente espontânea. Eis o que pode verificar-se em líricas como Beijo, Folha Caída, Sede de Amor, Adoração , Sol Íntimo ; na fábula Cabra , Carneiro e Cevado ; e em sátiras como O Dinheiro, A Monarquia , Eleições .

A esta simplicidade são, contudo, inerentes alguns riscos e defeitos. João de Deus nem sempre consegue evitar certa monotonia melopeica; o pequeno âmbito dos seus temas e recursos forçam-no, por vezes, a deslizar para os lugares-comuns ultra-românticos; certos preconceitos de moralismo burguês impõem-lhe que cubra de eufemismo pretensamente religioso alguns impulsos do seu temperamento ingenuamente sensual, como se todo o seu lirismo devesse subordinar-se à atitude do amor-adoração.

Guilherme de Azevedo



A poesia revolucionária das décadas de 70 e 80 mantém-se afastada da castiça naturalidade de João de Deus, do mesmo passo que da própria realidade quotidiana portuguesa. João de Deus deixou-nos poucas e breves sátiras políticas e sociais; mas, por exemplo, as três que citámos são excelentes pela sua exacta apreensão de factos característicos. Se lhes falta grande fôlego sintético, são, em compensação, inexcedivelmente fiéis ao bom senso popular.

O carácter pretensamente social do revolucionarismo literário de 70-80, a sua ligação com as aspirações bastante vagas e contraditórias da população descontente, denuncia-se claramente na incapacidade, que normalmente manifesta, de digerir perfeitamente os modelos franceses, assimilando-os às condições portuguesas; e no cunho em geral retórico e abstracto da sua expressão literária, destinado a iludir a sua impotência ou as suas contradições reais - nomeadamente quando às imagens de uma camada de espoliadores farisaicos e devassos opõe com insistência uma imagem inconscientemente caricata do povo, que esses poetas só conseguem ver envilecido, degenerado, física e moralmente atrofiado pela miséria.

É, por exemplo, significativo que todos os poetas revolucionários aceitem tão amiúde a designação de canalha para o povo, embora com ironia e chamando-a também a si.

As Odes Modernas fixaram muitos dos elementos oratórios dessa poesia, nomeadamente as suas abstracções de matiz religioso ou metafísico, a tendência proudhoniana para situar na consciência, e portanto no apostolado pedagógico e literário, os meios mais eficazes para operar qualquer transformação que melhore a condição humana.

Vítor Hugo forneceu, como temos dito, o principal figurino versificatório e estilístico para revestimento destas concepções gerais. Mas, como também notámos, foi a um Baudelaire mal (ou negativamente) entendido, se não conhecido em segunda mão (e até sob a forma de caricatura, no satanismo de um pretenso Fradiques Mendes, autor dos Poemas de Macadam publicados n' O Primeiro de Janeiro), que poetas panfletários portugueses de então foram buscar a imaginaria da podridão das urbes burguesas modernas. Distingue-se, neste sentido, o papel desempenhado por Guilherme de Azevedo (n. Santarém, 1839-11-30 - f. 1882-04-08).

Fisicamente mal dotado, ocultando a todos, desde os 14 anos, uma chaga incurável de que morreu aos 43, com uma infância dura, os estudos suspensos ao findar o curso liceal por incompreensão do pai, Guilherme de Azevedo revelou desde cedo uma clara simpatia pelos revoltados.

O seu primeiro volume de versos, Aparições, 1867, nada acrescenta ao lirismo amoroso romântico e ao vago progressismo já então consagrado na nossa poesia; mas anos depois, como redactor de um jornal da sua terra, Santarém, escandaliza quase todos os assinantes com uma apologia, aliás vacilante, da Comuna de Paris. A partir de então fixa-se em Lisboa, onde publica os seus principais livros, Radiações da Noite, 1871, e Alma Nova, 1874 (3.a edição 1981), e faz a sua vida no jornalismo, especialmente no folhetim humorístico, devendo salientar-se a sua colaboração na revista "Ocidente" e aquela que prestou ao António Maria e ao Álbum de Glórias de Rafael Bordalo Pinheiro, que tiveram uma enorme projecção no tempo.

Tentou também, sem êxito, o teatro, escrevendo, de colaboração com Junqueiro, a Viagem à roda da Parvónia, sátira social e política em forma de revista (1878). Viveu os dois últimos anos em Paris, como correspondente de um jornal brasileiro.

Guerra Junqueiro



O mais célebre dos poetas combativos de então é Guerra Junqueiro (n. 1850-09-15 - f. 1923-07-07).

Nascido em Freixo de Espada à Cinta, de uma família abastada, Junqueiro viu os seus primeiros versos editados e elogiados aos 14 anos.

O pai destinava-o à carreira eclesiástica, mas formou-se afinal em Direito ao tempo de João Penha, em cuja Folha colaborou. Nas poesias da fase estudantil já se revelam uma extrema facilidade improvisadora, a tendência para as antíteses e encarecimentos oratórios sobre temas da actualidade (derrota de Napoleão III, República em Espanha), e o gosto da grandiloquência pretensamente visionária.

Completado o curso em 1873, trava contactos com os intelectuais do Cenáculo, principalmente Guilherme de Azevedo, com quem colabora na revista Lanterna Mágica, e na peça de teatro ligeiro já citada. Publica então A Morte de D. João (1874), com que pretende ridicularizar o dom-joanismo como forma de egoísmo e perversão social, anunciando logo uma futura sátira contra Jeová, que, em oposição a Cristo, personificaria a forma transcendentalista, inumana e farisaica da religião.

O livro consagrou-o: combina uma alegoria reminiscente de Dante, a grandiloquência de Hugo e traços pretensamente baudelairianos de condenação da Cidade capitalista.

Irradiação e Evolução da Poesia Arcádica



Ao passarmos em revista a carreira dos principais árcades, já surpreendemos as grandes linhas de irradiação e evolução do arcadismo. Surgindo como um compromisso entre, por um lado, as tendências racionalistas, progressistas e realistas de uma camada intelectual de extracção burguesa, e, por outro lado, o classicismo do modelo greco-latino, que era a única tradição suficientemente prestigiada de cultura laica -, a poesia arcádica correspondia a um determinado processo de evolução social e tendia, por isso, a irradiar pelo País, num âmbito que se estendia desde o funcionalismo letrado lisboeta e a juventude estudantil coimbrã até onde quer que se pudesse constituir uma academia letrada provinciana.

O desenvolvimento da vida de relação, da sociabilidade superior, do amaneiramento nos costumes da burguesia, a que já fizemos referência quando falámos em assembleias, funções, representações teatrais privadas, em reuniões de botequins, etc., contribuiu para tal irradiação, que é acompanhada por um revigoramento constante das tendências realistas e sentimentalistas, a excluírem progressivamente o suporte, a mediação prestigiadora do classicismo antigo.

Além de Lisboa e Coimbra, e sem falar em certas academias provincianas que pouco ou nenhum rasto deixaram, notam-se depois do terramoto alguns sinais de polarização de vida literária na cidade do Porto, que, estimulada pela presença de uma numerosa colónia comercial inglesa, preludia a diferenciação cultural bem patente desta cidade em pleno Romantismo. O cónego Francisco Bernardo de Lima publica aí, em 1761 e 1762, a Gazeta Literária, que é o decano dos periódicos portugueses de crítica literária e de informação cultural. Paulino Cabral de Vasconcelos (abade de Jazente) e João Xavier de Matos são, em grande parte, o fruto de assembleias portuenses, e sobretudo de uma Academia Portuense que reuniria no paço episcopal do Porto.

Maior importância ainda se deve atribuir ao conjunto de altos funcionários literatos que viveram ou nasceram em Minas Gerais, visto que, com maior ou menor consciência disso, preparam no plano das Letras a emancipação nacional da burguesia brasileira, embora esta até muito tarde, por fins do século seguinte, ainda mostrasse muitos sinais de dependência cultural relativamente à universidade coimbrã e às tradições literárias especificamente portuguesas.

File:Baudouin, Pierre Antoine - Le Message d’amour.JPG


Recordemos, por fim, que em Lisboa, depois de extinta a Arcádia Lusitana, se procurou fundar em 1790 uma Nova Arcádia ou Academia das Belas-Letras .

Tratava-se, na verdade, de uma tertúlia com características mundanas, recitativos, chá e torradas, que reunia às quartas-feiras no palacete do conde de Pombeiro, sob a orientação de Domingos Caldas Barbosa. Dessas reuniões participavam, além de Bocage e José Agostinho de Macedo, que estudaremos, outros poetas, como Belchior Curvo Semedo (1766-1838), João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838), dois autores que frequentemente figuraram nas selectas escolares em virtude dos numerosos apólogos que, por sinal sem qualquer brilho, adaptaram ao verso português.

Já então as condições sociais da poesia portuguesa se alteravam profundamente, por forma que atingia o arcadismo. Enquanto, com as reformas pombalinas e pós-pombalinas da instrução, com a Academia Real das Ciências, o Estado chama a si um controlo crescente sobre o ensino, a erudição ou investigação mais sistematizada, os poetas sentem a decadência do mecenato por parte da Coroa ou da alta aristocracia, e, por outro lado, a presença e o estímulo de um novo público atento às manifestações de inconformismo e de polémica.

Uma grande parte da obra em verso de Nicolau Tolentino e de João Xavier de Matos, por exemplo, é constituída por longos memoriais autobiográficos a requerer favores e protecções sempre difíceis; mas, opostamente, foi dos aplausos dos seus admiradores de botequim, do público do Nicola e seu anexo reservado, o Agulheiro dos Sábios, que Bocage tirou o calor das suas invectivas contra o mundanismo da Nova Arcádia.

As guerras dos poetas, que já tinham abalado a Arcádia Lusitana, revelam a desagregação dos compromissos formalistas do arcadismo; às dissertações académicas sobre os preceitos da estética literária sucedem as sátiras e os panfletos verrinosos e demagógicos: José Agostinho de Macedo, bem escudado na sua fácil posição de crítico e até de censor antiliberal, não procura apenas a demolição literária de Bocage, Pato Moniz ou Garrett, mas produz toda uma infindável literatura planfletária que é uma tarefa de caceteiro ideológico contra os pedreiros-livres .

A esta transformação da base institucional de apoio, do público, não podia deixar de corresponder uma evolução no gosto poético, dentro do sentido geral em que ela se processa por toda a Europa. Filinto Elísio, o mais directo continuador do horacianismo à Correia Garção, traz para o verso (e para a prosa) o seu rude plebeísmo de garoto nado e criado ao ar livre da Ribeira das Naus.

O abade de Jazente, também padre e antiultramontano, incluiu na áurea mediania e no epicurismo horacianos a amizade pelos seus cães de caça e as efemérides das suas aventuras eróticas. Da camaradagem de armas com oficiais ingleses e da sua formação racionalista, Anastácio da Cunha ganhara entretanto forças para ir mais longe, até à expressão directa do amor como união carnal e à das dúvidas religiosas.

O apogeu desta tendência realista é representado, finalmente, por Nicolau Tolentino, cujas sátiras ironizam as frustrações pecuniárias, sociais e até fisiológicas daquela pequena burguesia pelintra a que não conseguiu arrancar-se.

É de notar o contraste existente entre a rápida maturação do pitoresco de costumes, da caricatura satírica, que se observa já em O Hissope e nas quintilhas tolentinianas - e o lento avanço do pitoresco paisagístico, que ainda em Garrett nos apresentará muito de convenção arcádica.

O ineditismo literário dos panoramas brasileiros, que em Cruz e Silva se transpõe para alegoria mitológica, só consegue aparecer muito diluidamente nos poemas de Basílio da Gama, Santa-Rita Durão e Tomás Gonzaga, numa ligação estreita com uma certa idealização das relações entre civilizados e o selvagem ameríndio ou então com a crítica, não menos idealista, da mineração aurífera. João Xavier de Matos e Bocage têm poemas cujo assunto, à primeira vista, se diria exclusivamente paisagista, mas que, na realidade, só acrescentam aos clichés camonianos ou arcádicos um arroubo sentimentalista ou uma tirada patética com certa insinuação rítmica. As próprias traduções que se fizeram dos iniciadores europeus do estilo pitoresco (Paulo e Virgínia foi traduzido por Bocage; Os Mártires do Cristianismo por Filinto Elísio; etc.) revelam, por parte dos tradutores, a tendência para eliminar as notações individualizantes de forma e cor, como foi apontado por Hernâni Cidade.

Este atraso de pitoresco paisagístico na literatura portuguesa relativamente às literaturas francesa e inglesa tem que ver decerto com o atraso da burguesia portuguesa em relação à dos países mais iluminados da Europa, pois, como adiante veremos, a presença de um mais largo público, em França e principalmente em Inglaterra, possibilita a animação estilística pelo colorido, pelo exótico, pelo insólito e por outros recursos.

A natureza espelhada nos nossos poetas que precedem de perto o Romantismo não se distingue pela intuição pitoresca, mas é em regra um pretexto de convenção clássica, de cientismo literatizado ou de encarecimento sentimental. O cientismo literatizado, como subproduto ideológico dos hábitos mentais do experimentalismo e da taxinomia naturalista, teve os seus cultores portugueses:o Dr. António Ribeiro dos Santos, D. Leonor de Almeida e sobretudo José Agostinho de Macedo. À esquina do século XVIII para o XIX, abundam as traduções parcelares ou totais de certos poetas cujo paisagismo um tanto analítico e rebuscado se pode considerar como contíguo a esse naturalismo cientista: Gessner, Wieland (traduzidos por Leonor de Almeida, Filinto), Delille, Castel (traduzidos por Bocage).

O Investigador Português, periódico que os liberais expatriados publicaram em Londres, entre 1811 e 1819, revela, como é natural, uma permeabilidade maior ao estilo pitoresco, bem como a todas as tendências pré-românticas em geral.


O Romantismo, com efeito, abre entre nós caminho através de numerosas traduções e adaptações das obras que na Europa reabilitaram o conceito, anteriormente pejorativo, de gótico, e consagraram o gosto da fantasia cavaleiresca ou sobrenatural, da melancolia funérea ou contemplativa, das narrativas bíblicas, orientais ou célticas. O salão da marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida, e os artigos de Vicente Nolasco da Cunha, que foi um dos directores do Investigador Português, salientam-se entre essas influências estilísticas de transição. Bocage, no entanto, é a personalidade mais representativa de uma crise que, mais do que o gosto e o estilo, atinge o próprio teor de vida literária e os preconceitos arcádicos e iluministas.

A literatura, que só conseguira celebrar o terramoto e o reformismo pombalino em termos convencionais e abstractos, testemunha já de um modo mais comunicativo certos fenómenos políticos posteriores (como a Viradeira, a política de paz de D. Maria I, os ecos da Revolução Francesa), e sobretudo o afrancesamento dos costumes, dos gostos sociais e da linguagem, na burguesia, ao lado de uma corte decadente mas de predilecções ainda barrocas: poetava-se mais para a função ou botequim do que para o outeiro ou academia, a velha reclusão das mulheres cedia às facilidades do namoro, e o cavaleiro de melindroso pundonor fazia-se chichisbéu peralta; as velhas fórmulas de tratamento, a Senhoria e a Excelência, democratizavam-se, ou, mais exactamente, aburguesavam-se, a despeito dos zelos de puritanismo tradicional e de sátiras inumeráveis.


In História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora



Nicolas Lancret

A Arcádia Portuense

Da vida literária no Porto na segunda metade do século XVIII poucas notícias nos chegaram; mas a própria obra do mundano pároco de Jazente, Paulino António Cabral (1719-05-06 - 1789-11-20), e a de João Xavier de Matos (n. por inícios do decénio de 1730, falecido em 1789 e cuja obra espelha uma vida goliardesca e dependente do mecenato aristocrático) dão-nos testemunho de uma Arcádia que reuniria por finais do decénio de 1760 sob os auspícios do bispo do Porto, e de uma intensa versificação destinada a outeiros conventuais e sobretudo a assembleias burguesas. Ambos os poetas estudaram em Coimbra; Xavier de Matos, natural do Sul, só entre 1762 e 1770 viveu no Porto, onde se apaixonou por uma freira; Paulino Cabral dá-nos da vida social do Porto um quadro que não difere muito daquele que Tolentino, por exemplo, surpreendeu em Lisboa.


Como poeta, sobretudo sonetista, Paulino António Cabral, abade de Jazente, actualiza mais que Garção os temas horacianos do amor epicurista e da dourada mediania rural. A vida simples da sua paróquia sertaneja, em frente às penhas do Marão e ao Tâmega, os sonetos sinceros à morte ou velhice dos seus cães, à caça, à pesca, à solidão tempestuosa, contrastam com os costumes afrancesados, as assembleias, os jogos, o teatro, bailes, passeios e aventuras galantes no Porto.


A naturalidade do seu estro deixa-nos precisos e prosaicos testemunhos epocais e biográficos: um dos sonetos é todo feito de preços de mercado, para poder rematar que "graças ao Céu, temos em bom preço/os tremoços, o arroz e as Senhorias "; e outro soneto dá-nos toda a sua ascendência burguesa até aos bisavós, para ridicularizar as manias genealógicas.

Mas o que há de mais vivo na sua obra é o diário da sua própria vida íntima, que não se limita a donjuanescas evocações de "ninfas" durienses, depois saudosamente evocadas quando já "matronas", senão que se enche de episódios concretos, especialmente no que se refere a uma Nise (anagrama de Inês da Cunha, como revela mais tarde): o ranger de portas, assobios e latidos da aventura nocturna; acessos incontíveis de ciúme ou de remorso; adeuses desesperados; excessos; momentos de aborrecimento e saturação; rumores de escândalo e de intriga familiar; o gosto do segredo e os rompantes de desfaçatez; surpresas; uma visita de Nise, fugida à trovoada; a vergonha, a contrição provocadas por um pregador; a luta do instinto com os cânones ("se faço mal, não sei; só sei que é bela"); a morte de Nise; um misto de saudade e desencanto; e a morte que nunca mais chega, o martírio de sobreviver à velhice caquéctica e à penúria.


Talvez porque o autor não pensasse em publicá-los, estes sonetos do abade de Jazente contam-nos de um modo directo o mais animado drama de amor que o verso português regista no século XVIII. De notar, ainda, referências à física de Descartes, o antijesuitismo e a admiração pelo marquês de Pombal.

João Xavier de Matos, com a sua versificação cantante, pode em grande parte considerar-se como um tardio e consciente epígono dos quinhentistas, especialmente de Camões. As suas poesias bucólicas, que tanta admiração granjearam no tempo, hoje quase só interessam pela sua doçura rítmica, porque o gosto insistente da paisagem não sai nele dos moldes clássicos convencionais.

A expressão das situações e atitudes criadas pelo amor pouco adianta a um abstracto camonianismo. Apenas sobressai uma toada persistente de tristeza e pessimismo, que se torna mais comunicativa numa carta autobiográfica e em certos remates de soneto com sabor quase romântico, como aquele em que quer "ver esta noite durar tanto/que nunca mais amanhecesse o dia", aqueloutro em que deseja "fartar o pensamento de saudade", ou ainda essoutro em que enumera uma série de ambientes sombrios, concluindo que, a realizarem-se todos, "nem então me fartara de tristeza".


Sob o ponto de vista ideológico, quer o abade de Jazente, quer Xavier de Matos são espíritos do Século das Luzes, apesar da condição sacerdotal daquele e da dependência áulica do último, que não o impediu de participar na crítica à nobreza de sangue e de ser denunciado como desrespeitador da religião.


Convém notar que, por ordem cronológica, as tendências realistas de Paulino António Cabral devem preceder as de Garção e de Cruz e Silva, ambos mais novos e, nesse particular, mais hesitantes; e que Xavier de Matos, mais ou menos contemporâneo dos três principais poetas da Arcádia, e um tanto afim de Reis Quita em certos tons de morbidez melancólica, se destaca hoje por ter feito ressaltar os topos sentimentais e tenebrosos, e, neste sentido, o pré-romantismo já inerente ao lirismo e ao bucolismo de Quinhentos e Seiscentos.


In História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora

O último mestre do Arcadismo

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Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819), mais conhecido pelo pseudónimo arcádico de Filinto Elísio, foi, apesar de dissidente da Arcádia Lusitana durante o tempo em que ela existiu, o seu mais combativo continuador em plena alvorada romântica.

Nascido de gente simples do mar e da praia, Francisco Manuel do Nascimento pôde fazer estudos e receber ordens sacras graças à ajuda de um embarcadiço mais categorizado. Entra depois num círculo de comerciantes ilustrados, alguns dos quais franceses, que muito devem ter contribuído para a sua formação enciclopedista e liberal. É deste tempo a guerra dos poetas que, por simples despeitos pessoais, opôs à Arcádia o chamado Grupo da Ribeira das Naus, a que pertencia; e foi então professor de D. Leonor de Almeida, futura marquesa de Alorna, a quem deve o pseudónimo arcádico, e da irmã, D. Maria de Almeida, que muito cortejou em verso. Depois da Viradeira, surpreendido por uma denúncia à Inquisição em que a própria mãe participou por pressão do confessionário, consegue iludir os esbirros com extraordinário sangue-frio e, graças ao auxílio de amigos franceses, embarcar para França, juntamente com Avelar Brotero.


Tirante um intervalo de quatro anos na Haia, viveu o resto da vida em Paris, na convivência de poucos amigos cultos, um dos quais foi o poeta Lamartine, que lhe dedicou um poema. À medida que os anos passam, as relações de amizade vão escasseando, o desconforto e o desespero crescem em torno da sua velhice. Vive de algumas lições, não parando nunca de escrever, para fazer dinheiro, para consolar-se, para combater em prol da estética horaciana, do casticismo de um idioma que então já mal ouve falar, dos problemas da Pátria distante perante os rumos abertos pelas revoluções americana e francesa.

O classicismo arcádico que Filinto Elísio serviu como último paladino harmonizava-se com a simbologia e os gostos neoclássicos da Revolução. O fundo ideológico de tal estética é visível em muitos passos. Exemplifiquemos com o verso em que exalta os Franceses que "escravos ontem, são hoje romanos".

Como diversos viajantes que no seu tempo conheceram Portugal, incluindo Beckford (cujo temperamento mórbido se comprazia precisamente com as sobrevivências barrocas da vida portuguesa), Filinto Elísio considera a sua Pátria ("Elísia") um atoleiro de superstição de carácter oriental; atribui toda a decadência aos "naires" da aristocracia, aos "bonzos" do clero regular, aos "talapões" e "dervizes" da alta jerarquia eclesiástica, aos "Busíris de loba", ou seja, os inquisidores, assim comparados a um facinoroso faraó - gente, toda essa, que mantinha a população e o "parvo rei" numa bárbara intolerância, numa crassa ignorância.


O estilo de Filinto Elísio é duro, trabalhado a golpes de cinzel e arcaizante. Os discursos doutrinários e as numerosíssimas notas que apõe como comentário às suas poesias consagram nele um dos prosadores clássicos mais enérgicos e cheios de recursos, embora demasiadamente apegado a certos processos que ele considera "quinhentistas", mas que são, em parte, seiscentistas, por exemplo, aos efeitos do hipérbato e à expressividade do vernaculismo vocabular.


Nas numerosas odes que escreveu e ainda noutros géneros mais coloquiais, como a epístola e a sátira, há muita vida directa e generosamente expressa e o amor fremente ao progresso pátrio. Mostra ao leitor, sem qualquer cerimónia, as suas angústias comezinhas, os dramas realmente vividos no quotidiano, os seus gostos francamente plebeus. A gente assiste, quase ano a ano, à festa do seu aniversário em 23 de Dezembro e à comemoração daquela data de 4 de Julho em que escapou aos esbirros, e sente-se a desolação que avança, dos seus sessenta anos para os setenta, destes para os oitenta, numa mansarda parisiense cada vez mais deserta, mais povoada de mortos, entre o crepitar mais escasso do lume e uma feijoada cada vez mais frugal.

A Pátria, a "Elísia" de Filinto é muito feita de Quinhentistas, de Camões, de heróis abstractamente cantados, à maneira arcádica, de um idioma amado com excessivo zelo purista, mas é também o seu grande tema de luta e ganha uma curiosa expressão material no apego gastronómico aos ovos-moles, às trouxas de ovos, ao arroz-doce, ao Colares, às morcelas, aos melões; concretiza-se também na rememoração de festanças populares ao ar livre e de uma hilariedade pagã.


Apesar do formalismo arcádico, sabe tornar flagrantes, como nenhum outro poeta do tempo, os ódios justos que o agitam, as aflições e tragédias de dinheiro, as quatro vezes que lhe roubaram uma biblioteca. Sentimos a generosidade com que, velho, atribuiu a primazia poética ao émulo Bocage; com que, batido, canta o Homem que refez a terra a partir da animalidade, dominou os raios de Júpiter e abrange o passado e o futuro pela Razão. Consola um amigo preterido pela mulher amada (por sinal, D. Leonor de Almeida), mostrando como é movediça a estrutura do corpo humano e como, correspondentemente, é plástica, resistente a todos os reveses a psicologia mais sincera do ser humano.


E, contudo, este homem tão chãmente burguês que, "como tendeiro honrado", deitou contas ao que ganhou com os versos, achando "cada verso a meio real", conserva um certo culto aristocrático pela literatura em moldes horacianos, pretendendo preservar de bastardias afrancesadas a linguagem alatinada de Quinhentos; e detesta o vulgo que não preza a difícil arte da expressão empolgante e exacta. É um poeta atentamente letrado no seu discurso, embora estudadamente burguês e plebeu quanto aos temas e por vezes no léxico.


A sua longa e prolixa epístola Da arte poética portuguesa, dirigida a José Maria de Brito, escrita aos 82 anos, tem fórmulas brilhantes, mas, pelo insistente decalque de Horácio e Garção, revela que o culto da forma segundo padrões especificamente literários que se transmitem da Antiguidade até ao neoclassicismo, culto que voluntariamente deprecia a língua vulgar e coloquial, não fora ultrapassado pelo mestre final da poesia arcádica.


In História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora

Imagens Arcadismo





Sobre o Arcadismo

O Arcadismo foi um estilo literário que perdurou pela maioria do século XVIII, tendo como principal característica o bucolismo, elevando a vida despreocupada e idealizada nos campos. Muitos dos participantes da Conjuração Mineira foram poetas árcades.

Cláudio Manuel da Costa

Introdutor do Arcadismo no Brasil, Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) estudou Direito em Coimbra. Rico, advogou em Mariana, SP, onde nasceu e estabeleceu-se depois em Vila Rica. Foi um poeta de transição, ainda muito preso ao Barroco. Era grande amigo de Tomás Antônio Gonzaga, como atesta a poesia deste. Tinha os pseudônimos (apelido, no caso dos árcades, de origem pastoril) de Glauceste Satúrnio e Alceste. O nome de sua musa era Eulina. Foi preso em 1789, acusado de reunir os conjurados da Inconfidência Mineira. Após delatar seus colegas, é encontrado morto na cela, um caso de suicídio até hoje nebuloso. Na citação a seguir está presente um elogio ao campo, lugar idealizado pelos árcades.

"Quem deixa o trato pastoril, amado,
Pela ingrata civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro da paz não tem provado."

Basílio da Gama

O poeta José Basílio da Gama (1741-1795), nascido em São João del Rei, MG. Estudou com os Jesuítas no RJ até a expulsão destes do Brasil pelo Marquês de Pombal. Foi para Itália e ingressou na Arcádia Romana, adotando o pseudônimo de Termindo Sipilío. Escapou de acusações de jesuitismo escrevendo elogios ao casamento da filha do Marquês de Pombal. Escreveu O Uruguai ajudado por este e o publicou em 1769. A segunda passagem é uma das passagens mais famosas de sua obra: a morte de Lindóia.

"Na idade que eu, brincando entre os pastores,
Andava pela mão e mal andava,
Uma ninfa comigo então brincava,
Da mesma idade e bela como as flores."

"Açouta o campo coa ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! No frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito." O Uruguai

Tomás Antônio Gonzaga

Nascido em Porto (1744-1810?) de pai brasileiro, estudou na BA e formou-se em Coimbra em Direito, sendo um jurista habilidoso. Envolvido na Inconfidência é preso em 23/05/1789 e mandado para a prisão no Rio de Janeiro. É deportado para a África em 1792. Na África se casa com uma rica herdeira, recupera fortuna e influências e morre, provavelmente, em 1810. Produziu pouco, exceto no curto tempo em que esteve em MG. Apaixonado por Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, escreveu Marília de Dirceu em sua homenagem. Ele ia casar-se com ela e partir para a Bahia assumir um cargo de desembargador, mas foi preso uma semana antes. Segundo suas poesias ele não participava da Conjuração, apesar de ser amigo de Cláudio Manuel da Costa. De fato, Gonzaga, acusado de ser o mais capaz de dirigir a Inconfidência e ser o futuro legislador, não suportava Tiradentes. Escreveu também as Cartas Chilenas, que satirizavam seu desafeto, o governador Luís Cunha Meneses. Sua obra apresenta características transitórias para o Romantismo, como a supervalorização do amor e a idealização da mulher em Marília de Dirceu.

"Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos ainda não está cortado;
Os Pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder de meu cajado." Marília de Dirceu

" Assim o nosso chefe não descansa
De fazer, Doroteu, no seu governo,
Asneiras sobre asneiras e, entre as muitas,
Que menos violentas nos parecem,
Pratica outras que excedem muito e muito
As raias dos humanos desconcertos." Cartas Chilenas

Santa Rita Durão

O Frei José de Santa Rita Durão (1720-1784), orador e poeta, pode ser considerado o criador do indianismo no Brasil. Seu poema épico Caramuru é a primeira obra a ter como tema o habitante nativo do Brasil; foi escrita ao estilo de Camões, imitando um poeta clássico assim como faziam os outros neoclássicos (árcades). Santa Rita Durão nasceu em Cata Preta (MG) e mudou-se para a Europa aos 11 anos de idade, onde teve grande participação política. Foi também um grande orador.

Alvarenga Peixoto

Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744?-1792) estudou com os jesuítas e formou-se com louvor na Universidade de Coimbra. Foi juiz e ouvidor. Casou-se com uma poetisa e deixou a magistratura, ocupando-se da lavoura e mineração no MG. Foi implicado na Inconfidência Mineira junto com seu parente, Tomás Antônio Gonzaga, e seu amigo Cláudio Manuel da Costa. Sentenciado a morte, teve a sentença comutada para degredo para Angola, onde morreu num presídio. Sua obra artística foi pequena, mas bem acabada. Segue um exemplo.

"Eu vi a linda Jônia e, namorado,
Fiz logo voto eterno de querê-la;
Mas vi depois a Nise, e é tão bela,
Que merece igualmente o meu cuidado."

Conceito de Romantismo




O adjectivo "romântico" é de origem inglesa seiscentista (romantic) e deriva do substantivo romaunt, de origem francesa (roman ou rommant), que designa os romances medievais de aventuras. O emprego da palavra generalizou-se a tudo aquilo que evoca a atmosfera desses romances - a cavalaria e em geral a Idade Média - até que, no último quartel do século XVIII, Letourneur e, depois, J. J. Rousseau a adoptam em francês, distinguindo romantique e romanesque . Do Inglês e do Francês a palavra passou a todas as línguas europeias, e já nos primeiros anos dos século XIX Frederico Schlegel e Madame de Staël opunham "romântico" a "clássico".


De então para cá as palavras "romântico" e "romantismo" têm sido usadas com variadíssimos e por vezes incompatíveis significados, de acordo com critérios de classificação de ordem psicológica, estética, ou até restritamente formal, temática, se não mesmo de ordem política ou moral. Mas noções como a de Romantismo (e, já vimos, a de Renascimento, de Barroco ou de Iluminismo) põem a um estudo de história literária ou cultural, não tanto o problema de definir formalmente um conceito, como o de delimitar e caracterizar dada época, a partir do seu conhecimento multiforme e concreto. No entanto, só como amostra da natureza complexa e contraditória das realidades em que se inspiram as próprias definições abstractas de Romantismo, lembremos as principais características que lhe têm sido atribuídas.


Já a etimologia do termo indigita algumas das feições mais frequentemente tidas como definitórias do Romantismo: o gosto das tradições medievais, muitas delas conservadas no romanceiro e, em geral, na cultura folclórica, que a literatura clássica francesa tinha desdenhado, e por sua influência outras literaturas da Europa ocidental na fase chamada neoclássica (século XVIII). Em certos países durante séculos integrados em monarquias estrangeiras (é o caso das nações eslavas) ou temporariamente dominados pelos exércitos napoleónicos (como a Alemanha e a Espanha), as tradições folclóricas constituirão uma tendência fundamental do romantismo, que a burguesia letrada revaloriza em oposição à cultura sem raízes nacionais.


Por outra banda, esta tendência liga-se mais ou menos a certas características formais: o banimento da mitologia e dos processos eruditos da retórica greco-romana; a mistura dos géneros definidos e contrastados pelas numerosas artes poéticas clássicas (tipicamente: a fusão da tragédia e da comédia no drama burguês ou histórico); uma versificação mais plástica, variada e popularizante, fora do colete-de-forças de formas decassilábicas como o soneto; um estilo em que o sublime e o grotesco se justapõem, e sem aquelas perífrases e aquela selecção vocabular que antes se julgava manterem a fronteira entre o poético e prosaico.

Mas tal libertação estilística, ou, como disse Vítor Hugo, tal imposição do barrete frígio ao velho dicionário não pode, por seu turno, separar-se de um conjunto de inovações temáticas às amenidades do bucolismo clássico opõe-se o belo horrível, disforme, tenebroso, cemiterial ou fantástico (o que se liga com o magistério de Dante e Shakespeare); à ordem e medida, o desordenado e o desmesurado paisagístico e psíquico; aos contornos nítidos e diurnos, o enevoado, o nocturno, o sonho irreal; à racionalização e ponderação de toda a estrutura de uma obra, a factura improvisada, os versos lançados ao sabor das rimas muito audíveis, a digressão a propósito ou despropósito, a interrupção da narrativa para um comentário ou confidência ao leitor, o exagero sentimental e melodramático; em vez do epíteto que apenas classifica ou encarece genericamente um dado ser, cultiva-se uma adjectivação, uma pormenorização descritiva orientadas a dar a cor local ou histórica, o pitoresco e o exótico (não apenas o medievo, ou em geral, passadista, mas também o espanhol, argelino, oriental, o dos ambientes miseráveis, o das lendas e mitologias germânicas, célticas e outras).


Há dois aspectos a que se costuma dar um relevo especial, pela importância que assumem nos géneros literários mais típicos da época romântica (historiografia, ficção histórica, ficção e investigação de objecto sociológico, romance ou poema de fundo autobiográfico, memoralismo, lirismo egocêntrico): o historicismo e o individualismo.

Os decénios mais frequentemente cobertos pela designação de Romantismo foram aqueles em que o ponto de vista genético, histórico, se começou a impor nos mais variados domínios científicos (teoria das nebulosas como origem dos mundos, geologia, transformismo biológico) e sobretudo nos domínios sociológicos e filosóficos (filosofia da história; teoria sobre a génese da civilização e da literatura; teoria histórica do direito; linguística histórica; concepção de um progresso social indefinido, e não apenas político ou moral e com um objectivo final à vista, como era para os iluministas).


Quanto ao individualismo, aliás extremamente contraditório nas suas manifestações, costuma apontar-se, quer a sua consonância com o derrubamento final das instituições e ideologias senhoriais-absolutistas, e com o individualismo político e económico de ideologia e âmbito burgueses, quer a sua reacção a formas novas de degradação humana, e até ecológica, acarretadas pela omnipotência do dinheiro, agora com menos entraves às suas funções mercantis, e pela revolução industrial da máquina a vapor alimentada a carvão. Como principais facetas literárias deste individualismo mencionam-se o culto da originalidade pessoal, em oposição à teoria clássica da imitação emuladora; o tema da insaciedade humana, da aspiração indefinida, a dor "cósmica" de simplesmente existir, a obsessão da morte, o autobiografismo directo ou velado, a apologia do herói insociável e amoral ou fora da lei (o pirata, o bandido, o proscrito, etc.).



Este individualismo pode ir até ao extremo da autonegação, que se manifesta no gosto do sonho ou devaneio passivos, ou de qualquer evasão imaginativa para alhures no tempo e no espaço (historicismo, exotismo); no sentimentalismo amoroso indizível e irrealizável; em manifestações de anárquico irracionalismo ou misticismo; e até, dentro de certos ambientes e fases anti-iluministas ou anti-revolucionárias, no encarecimento de valores poéticos inerentes às lendas cristãs, ao culto católico e ao mais antigo viver aristocrático feudal. É típico sobretudo do romantismo alemão o senso de incomensurabilidade do indivíduo: a dor cósmica (Weltschmerz) e uma ironia de algo que, em nós, se sente transcendente ao mundo e, até, a qualquer expressão poética possível.



Esta simples indicação e relacionação superficial das notações mais frequentemente atribuídas ao Romantismo vale só pelos problemas que suscitam as suas próprias incoerências. O que mais importa é ver estas características nas suas relações concretas inesgotáveis e no seu movimento cronológico, tendo sobretudo em vista as obras literárias e aquilo que no drama da época melhor nos ajude a compreender a vida mais autêntica e ainda palpitante dessas obras. Sigamos, nas suas linhas ainda necessariamente gerais, mas quanto possível decisivas, o curso europeu das tendências consideradas românticas, a fim de as podermos relacionar e contrastar com as que se verificam na literatura portuguesa.


In História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora



Condições Gerais do Romantismo



Nas origens remotas do Romantismo está o progresso económico, político e social da burguesia; no seu fecho estão as consequências da grande revolução industrial que a partir de 1850 transforma completamente a vida na Europa em menos de meio século.
A literatura clássica francesa é uma síntese entre os padrões de corte e padrões burgueses (caso típico: Voltaire). Nas literaturas barrocas, que são sobretudo as de países de burguesia atrasada, os padrões cortesanescos combinam-se com formas populares (caso de Lope de Vega).


A literatura inglesa é um caso à parte, em que a corte desempenha um papel mais apagado na integração da literatura. Por isso neste país se desenvolvem, mais cedo, com autonomia, géneros como o romance. Já desde o século XVII começa a manifestar-se a existência de um público de tipo inteiramente diverso do público de salão. Aumenta a importância e a procura do livro impresso, apesar das censuras: falámos das edições clandestinas que saem da Holanda e iludem a vigilância nas fronteiras. Multiplicam-se os projectos e tentativas de aperfeiçoamento do maquinismo tipográfico: estereotipia (1739); embranquecimento pelo cloro (1774); impressão da folha inteira por uma só vez (1781). As invenções aceleram-se a partir de 1798, ano em que se inaugura a imprensa Stanhope, que multiplica a rapidez das tiragens. Em 1812, o "Times" é impresso numa imprensa cilíndrica com motor a vapor (máquina Koenig). Aparecem também nos séculos XVIII e XIX, em Inglaterra e no Continente, as bibliotecas ambulantes e os gabinetes de leitura.


Esta massa de leitores impulsiona o rápido desenvolvimento do jornalismo a partir do século XVII. Em 1660 aparece o primeiro jornal diário, em Leipzig; em 1815 há em Londres, cidade com um milhão de habitantes, 8 diários da manhã e 8 da tarde, além de vários semanários. Os jornais são, como os livros, relativamente caros, o que em parte explica a multiplicação dos gabinetes de leitura e dos livros de aluguer, principalmente na Inglaterra. A partir de 1836 multiplica-se o jornal barato, também em Inglaterra.


Este público, possibilitado pela invenção da imprensa e pelo crescimento das camadas médias, está, aliás, a formar-se um pouco por toda a parte. O público popular, não alfabetizado, também beneficia da imprensa, visto que certas obras, como é o caso do Quixote de Cervantes, se liam oralmente em círculos de ouvintes. A um público burguês e também popular se destinam por exemplo, na Península Ibérica, os folhetos de cordel; e por ele se popularizam géneros literários à margem da tradição clássica, como o romance picaresco espanhol.


É pincipalmente na Inglaterra que um grande público ganha consistência e assiduidade de interesses. É lá, com efeito, que primeiro se consolida a nova literatura de forma e intenção burguesas, o que se conjuga perfeitamente com o avanço da sociedade mercantil neste país, com o precoce aburguesamento da parte da sua aristocracia e com a revolução industrial iniciada no século XVIII. O desenvolvimento do romance, o género mais adequado ao novo público, porque alcança uma população vasta e dispersa, constitui um dos principais sintomas desta transformação.


A Inglaterra oferece assim, desde muito cedo, uma literatura com características anunciadoras do Romantismo. O teatro de Shakespeare, as obras inspiradas na leitura quotidiana da Bíblia e, já no século XVIII, o romance inglês (Swift, Defoe, Richardson, Fielding, Sterne, etc.) contam-se entre as principais fontes e afluentes do movimento romântico do século XIX. Por isso, este movimento não representa na Inglaterra uma rotura de equilíbrio, mas mais uma fase de uma evolução literária relativamente contínua.



Noutros países, todavia, diversas estruturas sociais-culturais constituíram um dique ao desenvolvimento e generalização do novo gosto literário. O caso mais típico é o da França. O extraordinário desenvolvimento da vida de corte neste país deu lugar ao surto brilhante de uma cultura aristocrática e impôs um padrão de gosto que tem a sua principal expressão no teatro clássico, em que aliás entra certo racionalismo burguês, como já vimos. À margem das regras e modelos clássicos desenvolveram-se manifestações com elas incongruentes, como o romance sentimental (de Mme. Lafayette a Prévost), o romance picaresco (Marivaux e Lesage), um teatro de novo género (Beaumarchais), o conto voltairiano, a literatura confitente de Rousseau. Mas estas novas formas não eliminam o domínio dos géneros clássicos e cruzam-se, por fim, com eles na sua fase final: o rococó. O movimento romântico francês oferece, por isso, ao cabo de uma evolução sinuosa que esquematizaremos, o aspecto de uma transformação revolucionária, de rotura deliberada com o passado, que não encontramos na literatura inglesa.

O Realismo segundo Eça

Que é, pois, realismo? É uma base filosófica para todas as concepções do espírito – uma lei, urna carta de guia, um roteiro do pensamento humano, na eterna região do belo, do bom e do justo. Assim considerado, o realismo deixa de ser, como 4lguns podiam falsamente supor, um simples modo de expor – minudente, trivial, fotográfico. Isso não é realismo: é o seu falseamento. E o dar-nos a forma pela essência, o processo pela doutrina. O realismo é bem outra coisa: é a negação da arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o realismo é uma reacção contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.



Eça de Queirós, 4ª Conferência do Casino




(A reconstituição desta conferência foi feita por António Salgado Júnior. O texto original perdeu-se).

Sobre o realismo

Por meados do século XIX as profundas transformações operadas pelo motor a vapor de água na produção industrial, nos transportes, na economia e nas relações sociais tinham feito surgir problemas e maneiras colectivas de pensar e sentir, já muito diferentes de tudo aquilo que estava na base do Iluminismo e da Revolução Francesa. No terreno científico, as concepções mecanicistas foram ultrapassadas: a termodinâmica mostrava a unidade e conversibilidade existente entre todas as formas de energia; a química orgânica ligara os fenómenos físico-químicos aos fisiológicos; as concepções transformistas generalizavam-se, verificando-se que tudo no mundo tinha uma história, desde os corpos celestes até à crosta terrestre, às espécies biológicas, às estruturas sociais, aos idiomas e aos princípios jurídicos. Esta concepção de um mundo todo explicável cientificamente e em constante transformação reflectiu-se no aparecimento da filosofia da história e afectou as crenças religiosas muito mais profundamente do que o mecanismo.

A nova mentalidade científica e filosófica não podia deixar de reflectir-se no modo de se encararem os problemas humanos que então se agravavam, com a industrialização e com a redução de uma percentagem crescente de pessoas à condição de assalariadas. Mas, além do surto de novas doutrinas históricas ou sociológicas, tais problemas e tal mentalidade produzem também os seus efeitos na arte literária. Como vimos, no Romantismo podem distinguir-se duas fases: a primeira, predominantemente passadista, conservadora, embora adaptada a um novo tipo de público; a segunda, desde cerca de 1830, em que os escritores entram a preocupar-se com os problemas humanitários mais clamorosos: a escravatura, que os mecanismos tornavam dispensável e que tolhia a mecanização; os horários excessivos do trabalho operário; o sufrágio universal; o analfabetismo; a delinquência causada pela miséria; a infância abandonada; etc. As consequências morais e sociais da caça ao lucro foram postas em relevo pelo grande romancista francês Balzac, na sua série de obras A Comédia Humana; a exploração da infância e dos miseráveis, as brutalidades do regime prisional então vigente são denunciadas por Hugo e Dickens; outros escritores muito populares ridicularizam o burguês e exaltam o humanitarismo (os romancistas franceses Eugène Sue, George Sand, Monnier; os ingleses Kingsley, Carlyle; o poeta Béranger).

Esta mentalidade científica, esta tendência para retratar os males sociais na obra literária, estreitamente relacionadas com as revoluções europeias de 1848 e o aparecimento das primeiras ideologias socialistas, conduziram ao chamado Realismo, escola de arte que procura esmerar-se na produção típica e desapaixonada da realidade, especialmente a realidade social humana, e que reage contra o devaneio individualista sentimental de quase todos os primeiros românticos. Os mais típicos realistas foram Courbet na pintura e Flaubert no romance (Madame Bovary).




Óscar Lopes e Júlio Martins, Manual Elementar de Literatura Portuguesa.

O Humanismo na Literatura Portuguesa


O Humanismo português vai desde a nomeação de Fernão Lopes para o cargo de cronista-mor da Torre do Tombo, em 1434, até o retorno de Sá de Miranda da Itália, em 1527, quando começou a introduzir em Portugal a nova estética clássica.



Torre do Tombo: arquivo do Reino, onde se guardavam os documentos oficiais. A Torre do Tombo foi destruída por um terremoto em 1755, mas o arquivo conservou sempre o mesmo nome.


O termo Humanismo literário é usado comumente para designar o estudo das letras humanas em oposição à Teologia. Na Idade Média, predomina a concepção teocêntrica, em que tudo gira em torno dos valores religiosos. A partir do Humanismo desenvolve-se uma nova concepção de vida: os eruditos defendem a reforma total do homem; acentuam-se o valor do homem na terra, tudo o que possa tornar conhecido o ser humano; preocupam-se com o desenvolvimento da personalidade humana, das suas faculdades criadoras; têm como objetivo atualizar, dinamizar e dar uma nova vida aos estudos tradicionais; empenham-se em fazer a reforma educacional.



Nesse período da história literária, são cada vez mais lidos e apreciados os autores gregos e latinos. A estética medieval – rude e grosseira – é substituída pela grego-latina – harmoniosa e culta. O latim passa a ser a língua de muitos humanistas, que se deixam tomar de grande entusiasmo pelo saber, pelas artes clássicas.



A produção literária portuguesa desse período pode ser subdividida em:
_ Prosa: a) Crônicas de Fernão Lopes, b) Prosa doutrinária e c) Novela de cavalaria
_ Poesia: Poesia palaciana
_ Teatro: Obra de Gil Vicente



Prosa


















Conhecido como o “Pai da Historiografia portuguesa”, Fernão Lopes foi encarregado por D. Duarte de guardar os arquivos da Torre do Tombo, onde se achavam os principais documentos sobre Portugal. Incumbido de escrever relatos sobre os acontecimentos de diversos períodos históricos (as chamadas crônicas), Fernão Lopes destacou-se como um prosador dono de um estilo rico e movimentado. Não se limitando a tecer elogios a reis, como a outros cronistas da época; fez descrições detalhadas não só do ambiente da corte, mas também das aldeias, das festas populares e, principalmente, do papel do povo nas guerras e rebeliões.



São de sua autoria:
_ A Crônica de El-Rei D. Pedro I: narrativa dos principais acontecimentos de seu reinado;
_ A Crônica de El-Rei D. Fernando: narrativa dos fatos que ocorreram desde o casamento de D. Fernando com Leonor Telles até o início da Revolução de Avis;
_ A Crônica de El-Rei D. João I: narrativa dos acontecimentos relativos a seu reinado (1385-1411), quando é assinado a paz com Castela.


Fernão Lopes é reconhecido como historiador de inegável méritos e verdadeiro narrador-artista preocupado não apenas com a verdade do conteúdo de suas narrativas, mas também com a beleza da forma. É reconhecido também pela sua capacidade de observar e analisar personagens históricas.


Fernão Lopes analisou com objetividade e justiça os documentos históricos: foi cauteloso em determinar a verdade histórica, ao confrontar textos e versões sobre um mesmo acontecimento.

Prosa Doutrinária

Estas obras destinavam-se ao aprendizado de determinadas artes, muito em moda na época:
_ Livro da montaria;
_ Livro da falcoaria;
_ Leal conselheiro (um verdadeiro guia sobre sentimentos humanos).

Novela de Cavalaria


A novela de cavalaria relatava os feitos históricos de um corajoso cavaleiro, em alguma nobre missão. Neste período, é escrita a novela Amadis de Gaula, que conta a história do cavaleiro Amadis, apaixonado por Oriana, por que se lança em inúmeras aventuras.

Sobre o Humanismo

Humanismo na Literatura
















Humanismo é o nome que se dá à produção escrita histórica literária do final da Idade Média e início da Moderna , ou seja , parte do século XV e início do XVI , mais precisamente , de 1434 a 1527 . Três actividades mais destacadas compuseram esse período : a produção historiográfica de Fernão Lopes , a produção poética dos nobres , por isso dita Poesia Palaciana , e a actividade teatral de Gil Vicente .






















No final do século XV , a Europa passava por grandes mudanças , provocadas por invenções como a bússola , pela expansão marítima que incrementou a indústria naval e o desenvolvimento do comércio com a substituição da economia de subsistência , levando a agricultura a tornar-se mais intensiva e regular . Deu-se o crescimento urbano , especialmente das cidades portuárias , o florescimento de pequenas indústrias e todas as demais mudanças económicas provenientes do Mercantilismo , inclusive o surgimento da burguesia .



Todas essas alterações foram agilizadas com o surgimento dos humanistas , estudiosos da cultura clássica antiga . Alguns eram ligados à Igreja ; outros , artistas ou historiadores , independentes ou protegidos por mecenas.

Esses estudiosos tiveram uma importância muito grande porque divulgaram , de forma mais sistemática , os novos conceitos , além de identificaram e valorizarem direitos dos cidadãos . Acabaram por situar o homem como senhor de seu próprio destino e elegeram-no como a razão de todo conhecimento , estabelecendo , para ele , um papel de destaque no processo universal e histórico .

Essas mudanças na consciência popular , aliadas ao fortalecimento da burguesia , graças à intensificação das actividades agrícolas , industriais e comerciais , foram , lenta e gradativamente , minando a estrutura e o espírito medieval .

Em Portugal , todas essas alterações se fizeram sentir , evidentemente , ainda que algumas pudessem chegar ali com menor força ou , talvez , difusas , sobretudo porque o impacto maior vivido pelos portugueses foi proporcionado pela Revolução de Avis ( 1383-1385 ), na qual D. João , mestre de Avis , foi ungido rei , após liderar o povo contra injunções de Castela .


Alguns factores ligados a esse quadro histórico indicam sua influência no rumo que as manifestações artísticas tomaram em Portugal . São eles : as mudanças processadas no país pela Revolução de Avis ; os efeitos mercantilistas ; a conquista de Ceuta ( 1415 ) , facto que daria início a um século de expansionismo lusitano ; o envolvimento do homem comum com uma vida mais prática e menos lirismo cortês , morto em 1325 ; o interesse de novos nobres e reis por produções literárias diferentes do lirismo . Tudo isso explica a restrição do espaço para o exercício e a manifestação da imaginação poética , a marginalização da arte lírica e o fim do Trovadorismo . A partir daí , o ambiente tornou-se mais propício à crónica e à prosa histórica , ao menos nas primeiras décadas do período .

Culturalmente , a melhoria técnica da imprensa propiciou uma divulgação mais ampla e rápida do livro , democratizando um pouco o acesso a ele . O homem desse período passa a interessar-se mais pelo saber , convivendo com a palavra escrita . Adquire novas ideias e outras culturas como a greco-latina .

Mas , sobretudo , o homem percebe-se capaz , importante e agente . Acreditando-se dotado de "livre arbítrio", isto é , capacidade de decisão sobre a própria vida , não mais determinada por Deus , afasta-se do teocentrismo , assumindo , lentamente , um comportamento baseado no antropocentrismo . Isto implica profundas transformações culturais . De uma postura religiosa e mística , o homem passa gradativamente a uma posição racionalista.


O Humanismo funcionará como um período de transição entre duas posturas . Por isso , a arte da época é marcada pela convivência de elementos espiritualistas ( teocêntricos ) e terrenos ( antropocêntricos ) .


A historiografia , a poesia , a prosa doutrinária e o teatro apresentaram características específicas .

















Com o aumento de interesse pela leitura , houve um significativo e rápido crescimento da cultura com o surgimento de bibliotecas e a intensificação de traduções de obras religiosas e profanas , além da atualização de escritos antigos . Esse envolvimento com o saber atingiu também a nobreza , a ponto de as crônicas históricas passarem a ser escritas pelos próprios reis , especialmente da dinastia de Avis , com os exemplos de D. João I , D.Duarte e D. Pedro .


Sobre o Romantismo

Romantismo foi um movimento artístico, político e filosófico surgido nas últimas décadas do século XVIII na Europa que perdurou por grande parte do século XIX. Caracterizou-se como uma visão de mundo contrária ao racionalismo que marcou o período neoclássico e buscou um nacionalismo que viria a consolidar os estados nacionais na Europa.

Inicialmente apenas uma atitude, um estado de espírito, o Romantismo toma mais tarde a forma de um movimento e o espírito romântico passa a designar toda uma visão de mundo centrada no indivíduo. Os autores românticos voltaram-se cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e desejos de escapismo. Se o século XVIII foi marcado pela objetividade, pelo Iluminismo e pela razão, o início do século XIX seria marcado pelo lirismo, pela subjetividade, pela emoção e pelo eu.

O termo romântico refere-se, assim, ao movimento estético ou, em um sentido mais lato, à tendência idealista ou poética de alguém que carece de sentido objetivo.

Sobre o Barroco.

Sobre a pintura barroca, quais foram as suas conseqüencias? E quais suas principais obras e artistas?



Há 300 anos, em junho de 1698, quando o acampamento de Ouro Preto foi fundado no alto de um morro perdido na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, nada prenunciava seu glorioso futuro. O clima era sombrio, esmagado por muralhas de montanhas, e o arraial equilibrava-se sobre solo escorregadio. "A primeira coisa que se fazia ao criar uma cidade", disse à SUPER o historiador português Vitor Serrão, professor de História da Arte na Universidade de Lisboa, "era construir uma capela. A maior preocupação era não faltar igreja para as festas santas como o Natal."




E foi de capela em capela, cada vez mais próspero com a descoberta de vários depósitos de ouro nas imediações, que, em 1711, o povoado virou a Vila Rica do Ouro Preto, a capital do barroco - o estilo artístico exuberante que dominou a arquitetura, a pintura, a escultura, a literatura, a música, o mobilário, a ourivesaria e a mentalidade do país durante 100 anos. Tanto tempo que, para muitos historiadores, o barroco não só fundou a cultura brasileira, como continua a influenciá-la até hoje - apesar de ser o avesso das modas minimalistas pós-modernas. A idéia é apaixonante. E controversa, como você vai ver nesta reportagem.




O certo é que o barroco brasileiro está em alta. Cento e vinte mil pessoas já visitaram em São Paulo a exposição O Universo Mágico do Barroco, que reúne, pela primeira vez, 400 peças deslumbrantes do período colonial. O sucesso é tanto que a mostra foi prorrogada até 18 de outubro. Em maio, a Christie's de Londres, a mais famosa casa de leilões do mundo, vendeu, pelo preço recorde de 420 000 dólares, uma imagem de Nossa Senhora das Dores esculpida por Aleijadinho, o principal artista brasileiro do período. Quer dizer, se alguma vez o barroco esteve em declínio por aqui, ele agora está renascendo.





Artistas brasileiros reelaboraram, a seu gosto, o barroco português. As cores deste teto da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, pintado por Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), são muito mais vivas e quentes do que as encontradas em Portugal.




Ataíde desenhou as feições de sua companheira, a mulata Maria do Carmo Raimunda, no rosto de Nossa Senhora da Porciúncula. E, nos anjos, pôs os traços de seus filhos e de moleques de Vila Rica.




Aos pés da Virgem, repare o desconcertante anjo mulato, feio e aleijado, empunhando um cajado que ergue a santa aos céus. É o artista Antonio Francisco Lisboa, o genial Aleijadinho (1730-1814), amigo do pintor.





Os símbolos da fé revigorada



Ofuscar os sentidos. Afirmar o esplendor divino. Conquistar a alma e a imaginação com a exuberância da fé. Maravilhar. Extasiar. Ao recomendar novas diretrizes estéticas à Arte, os cardeais reunidos na última sessão do 19º Concílio Ecumênico da Igreja Católica Romana, em 1563, na cidade de Trento, na Itália, não estavam brincando. O Vaticano precisava reagir à expansão da Reforma protestante na Europa, iniciada por Lutero, na Alemanha, em 1517. O barroco - termo derivado da palavra espanhola barueco, que significa pérola irregular - foi um dos principais instrumentos de propaganda do movimento da Contra-Reforma. Não por acaso, um dos primeiros edifícios com decoração nesse estilo foi a Igreja de Jesus, em Roma, de 1575, construída para sediar a Companhia de Jesus, a ordem dos jesuítas, fundada para combater o protestantismo.




"A Igreja queria parecer moderna e não ultrapassada", explicou à SUPER o historiador Carlos José Aparecido, da Fundação do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, em Minas Gerais. "A pompa e a exuberância barrocas quebravam a linearidade e a rigidez dos estilos vigentes, o renascentista, harmônico e equilibrado, e o maneirista, superficial e artificioso. E impressionavam." Daí o seu apego à curva, ao movimento, ao drama, à decoração feérica e, paradoxalmente - em se tratando de uma arte religiosa -, à sensualidade.

O barroco foi uma reafirmação do poder da fé. Diante do protestantismo, que pregava austeridade e rigidez, o catolicismo reagiu alardeando a exaltação mística e o delírio dos sentidos. A vitória da emoção sobre a razão.





Atraso luso


O Concílio de Trento e suas idéias estéticas ajudaram os reis católicos a impor seu poder sobre os nobres locais e a consolidar as monarquias absolutas. Por isso, no século XVII, o período barroco por excelência na Europa, surgiram palácios monumentais e hiperdecorados, como o de Versailles (1655), na França, reafirmando a grandeza do Estado.



Mas Portugal já estava em decadência quando o barroco surgiu. Perdera importantes entrepostos comerciais e, em 1580, o próprio rei, d. Sebastião, morria em batalha, no Marrocos, sem deixar herdeiros. A tragédia redundou em outra, maior, quando as complicações dinásticas levaram à anexação das terras lusitanas pela Espanha. "Esse período, de 1580 a 1640", define o historiador Nicolau Sevcenko, professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo, "constitui o maior pesadelo da história portuguesa."



A perda de poder político e financeiro refletiu-se na cultura. É a época da "arte chã", que, na Arquitetura, produziu igrejas singelas, com torres quase como guaritas e interiores ornamentados em madeira talhada. "Uma vez que não havia mármore ou pedras nobres, como nos países ricos", explica Vitor Serrão, "a solução foi trabalhar com azulejo, madeira e painéis pintados". Só em 1640, com a reconquista da independência, o barroco português deslanchou, com quase um século de atraso.




Anjinhos


Os anjos meninos eram símbolos do amor divino



Atlantes e cariátides

Figuras míticas da Antigüidade, atlantes (homens) e cariátides (mulheres), serviam como suportes de colunas




Flores


São representações da beleza da alma e da fugacidade das coisas



O pelicano

Uma metáfora do amor materno. A ave bica a si própria para oferecer o sangue aos filhos




Conchas


Conchas de vieira e coquilles de saint-jacques, pregadas no peito, identificavam os peregrinos que iam ao santuário de Santiago de Compostela, na Espanha, no século XI




Espinhos


Os emaranhados ásperos lembravam a consciência da dor do pecado




Palmas


Os feixes de folhas sugeriam o triunfo de Jesus sobre o martírio




Cachos de uva


Ramos de videira e uvas evocavam o sangue de Cristo




Os três ciclos do barroco colonial


No Brasil, a ascensão do novo gênero artístico acompanhou a descoberta do ouro em Minas - a primeira corrida do ouro do Ocidente. Em cinqüenta anos, 600 000 portugueses emigraram para cá. Desses, calcula o historiador Jaelson Britan Trindade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de São Paulo, "pelo menos 800 eram artistas".



No final do século XVII, descontados os índios, a população brasileira de origem européia contava 40 000 habitantes. No fim do século XVIII, pulou para 1,5 milhão. Nas cidades litorâneas, sob maior influência da metrópole, o barroco foi mais português. Já no interior de Minas, isolado pela distância e pela precariedade das comunicações, ganharia cada vez mais características próprias.




Um século de evolução


Quando surgiu, em Salvador e em Recife, o estilo mudou o interior das igrejas, não o exterior. Nesse período inaugural, chamado de nacional português, as fachadas e plantas continuam retilíneas, mas, por dentro, os templos viraram suntuosas "cavernas douradas", com paredes e tetos inteiramente revestidos de madeira esculpida em alto ou baixo-relevo (a talha), e pinturas encaixadas em molduras (os caixotões). Os painéis que ficam atrás e acima do altar (os retábulos) apresentam colunas torcidas e decoração profusa. É o caso da Capela Dourada (1695), em Recife, da Igreja de São Francisco de Assis (1703), em Salvador, e da capela de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (1719), Minas Gerais.



A partir de 1730, nota-se uma mudança. É o período joanino, marcado pela gosto italiano do rei português, d. João V. As estátuas se integram à madeira dos retábulos e os caixotões desaparecem, substituídos por pinturas ilusionistas (que provocam ilusão de óptica), recobrindo o teto. A arquitetura adota linhas curvas, naves alongadas e torres circulares, como nas igrejas de Nossa Senhora da Conceição da Praia (1758), em Salvador, Nossa Senhora do Pilar (1734) e Nossa Senhora do Rosário (1750), ambas em Ouro Preto.

Outras mudanças cristalizam-se a partir de 1760, com o ciclo rococó. Aí, as fachadas tornam-se mais leves e audaciosas, com curvas e contra-curvas, elegantes torres redondas e portadas com relevo de pedra-sabão. Os ambientes são claros e arejados, e a luz natural enfatiza a ornamentação sobre fundos caiados de branco. Os templos projetados por Aleijadinho, como a Igreja de Nossa Senhora do Carmo (1766), em Ouro Preto, e a de São Francisco de Assis (1774), em São João del Rey, são obras-primas da época. "O interior dessas igrejas", diz Myriam Ribeiro de Oliveira, professora de História da Arte na Universidade Federal do Rio de Janeiro, "são verdadeiros poemas sinfônicos de luz e de cor".



Período nacional português (1700 -1730)


Todos os espaços disponíveis em paredes e tetos eram profusamente decorados.


O retábulo do altar, esculpido em madeira, formava uma verdadeira caverna dourada



A Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (MG), construída em 1719


Pintura em caixotões no teto da Igreja de Nossa Senhora da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador


Período joanino (1730 -1760)


O retábulo da Igreja de N. Senhora do Rosário, de Ouro Preto, ressalta a ornamentação das esculturas.