segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

João de Deus




Intelectual pouco curioso, com uma concepção de vida tradicional moldada no seu catolicismo popular, animada pela sua bondade e sensibilidade inatas, João de Deus tinha, contudo, o sentido dos recursos de expressão poética mais permanente no idioma: a sua lírica amorosa e a sua sátira conservam-se muito mais comunicativas do que o sentimentalismo ultra-romântico e a poesia panfletária sua contemporânea.

Filho de um pequeno comerciante de S. Bartolomeu de Messines, João de Deus Ramos (n. 1830-03-08 - f. 1896-01-11) distinguiu-se em Coimbra, durante os dez anos em que fez a sua formatura (1849-59), por uma série de dons que o tornavam indispensável aos companheiros: o jeito para desenhar, para tocar viola e para improvisar líricas de gosto popular e sátiras estudantis. Já então, como sempre, eram os amigos que tratavam de escrever, seleccionar e publicar os versos que cantava ou ditava de cor.

Depois de formado, tentou vida de advogado e de jornalista em Coimbra, Beja, Évora e, depois, Lisboa. Recordemos que em 1863, n' O Bejense, criticava Castilho. No meio de difíceis condições monetárias, que o obrigavam a aceitar trabalho de costura e a escrever versos pagos de encomenda, é à diligência de amigos e admiradores que deve, em 1869, duas surpresas: uma eleição para deputado e a edição da sua primeira grande colecção de poesias, Flores do Campo . Por solicitação de um livreiro, dedica-se depois à preparação da sua conhecida Cartilha Maternal, que se publica em 1876.

Inicia-se deste modo a sua carreira de pedagogo, que lhe acarretou sérios desgostos até ao fim da vida, fazendo-o reagir com polémicas e sátiras, mas que também lhe valeu em 1895, a poucos meses do falecimento, uma das mais entusiásticas consagrações públicas de que foi alvo um escritor português. Em 1893, Teófilo Braga, um dos seus mais fervorosos admiradores, editava-lhe a mais completa colecção de poemas, o Campo de Flores, que em breve se esgotou, exigindo uma reedição que se seguiu de perto ao seu memorável funeral nacional.

O hábito de improvisar à viola variantes musicais e poéticas do cancioneiro popular e estudantil, de versificar para música, de trabalhar os seus poemas de cor e auditivamente, deve ter contribuído para que João de Deus nos deixasse uma série de poesias de tão simples e pura expressividade rítmica.

O seu dom lírico, e também satírico, revela-se pela capacidade de regressar à expressão mais directa dos sentimentos, à expressão infantil ou feminina. Os seus poemas são feitos do material mais comum da língua: repetições, exclamações, anacolutos, um vocabulário correntio e um teclado restrito mas universal de imagens, que ele, às vezes, percorre enumerativamente: a flor, a ave, a pérola, a estrela, a lua, o céu, a luz, a fonte, o vento, a nuvem, o perfume... De tão simples recursos ou não se faz nada ou faz-se uma poesia que resiste como a do património oral das nações.

É isto o que acontece com João de Deus: se o julgarmos pelos seus melhores poemas, nenhum dos poetas seus contemporâneos tem uma fala mais moderna que ele. A sua poesia repele qualquer declamação pretensiosa; as inflexões de voz que ela nos pede estão no ouvido, são as inflexões das crianças e da gente espontânea. Eis o que pode verificar-se em líricas como Beijo, Folha Caída, Sede de Amor, Adoração , Sol Íntimo ; na fábula Cabra , Carneiro e Cevado ; e em sátiras como O Dinheiro, A Monarquia , Eleições .

A esta simplicidade são, contudo, inerentes alguns riscos e defeitos. João de Deus nem sempre consegue evitar certa monotonia melopeica; o pequeno âmbito dos seus temas e recursos forçam-no, por vezes, a deslizar para os lugares-comuns ultra-românticos; certos preconceitos de moralismo burguês impõem-lhe que cubra de eufemismo pretensamente religioso alguns impulsos do seu temperamento ingenuamente sensual, como se todo o seu lirismo devesse subordinar-se à atitude do amor-adoração.

0 comentários: