Da vida literária no Porto na segunda metade do século XVIII poucas notícias nos chegaram; mas a própria obra do mundano pároco de Jazente, Paulino António Cabral (1719-05-06 - 1789-11-20), e a de João Xavier de Matos (n. por inícios do decénio de 1730, falecido em 1789 e cuja obra espelha uma vida goliardesca e dependente do mecenato aristocrático) dão-nos testemunho de uma Arcádia que reuniria por finais do decénio de 1760 sob os auspícios do bispo do Porto, e de uma intensa versificação destinada a outeiros conventuais e sobretudo a assembleias burguesas. Ambos os poetas estudaram em Coimbra; Xavier de Matos, natural do Sul, só entre 1762 e 1770 viveu no Porto, onde se apaixonou por uma freira; Paulino Cabral dá-nos da vida social do Porto um quadro que não difere muito daquele que Tolentino, por exemplo, surpreendeu em Lisboa.
Como poeta, sobretudo sonetista, Paulino António Cabral, abade de Jazente, actualiza mais que Garção os temas horacianos do amor epicurista e da dourada mediania rural. A vida simples da sua paróquia sertaneja, em frente às penhas do Marão e ao Tâmega, os sonetos sinceros à morte ou velhice dos seus cães, à caça, à pesca, à solidão tempestuosa, contrastam com os costumes afrancesados, as assembleias, os jogos, o teatro, bailes, passeios e aventuras galantes no Porto.
A naturalidade do seu estro deixa-nos precisos e prosaicos testemunhos epocais e biográficos: um dos sonetos é todo feito de preços de mercado, para poder rematar que "graças ao Céu, temos em bom preço/os tremoços, o arroz e as Senhorias "; e outro soneto dá-nos toda a sua ascendência burguesa até aos bisavós, para ridicularizar as manias genealógicas.
Mas o que há de mais vivo na sua obra é o diário da sua própria vida íntima, que não se limita a donjuanescas evocações de "ninfas" durienses, depois saudosamente evocadas quando já "matronas", senão que se enche de episódios concretos, especialmente no que se refere a uma Nise (anagrama de Inês da Cunha, como revela mais tarde): o ranger de portas, assobios e latidos da aventura nocturna; acessos incontíveis de ciúme ou de remorso; adeuses desesperados; excessos; momentos de aborrecimento e saturação; rumores de escândalo e de intriga familiar; o gosto do segredo e os rompantes de desfaçatez; surpresas; uma visita de Nise, fugida à trovoada; a vergonha, a contrição provocadas por um pregador; a luta do instinto com os cânones ("se faço mal, não sei; só sei que é bela"); a morte de Nise; um misto de saudade e desencanto; e a morte que nunca mais chega, o martírio de sobreviver à velhice caquéctica e à penúria.
Talvez porque o autor não pensasse em publicá-los, estes sonetos do abade de Jazente contam-nos de um modo directo o mais animado drama de amor que o verso português regista no século XVIII. De notar, ainda, referências à física de Descartes, o antijesuitismo e a admiração pelo marquês de Pombal.
João Xavier de Matos, com a sua versificação cantante, pode em grande parte considerar-se como um tardio e consciente epígono dos quinhentistas, especialmente de Camões. As suas poesias bucólicas, que tanta admiração granjearam no tempo, hoje quase só interessam pela sua doçura rítmica, porque o gosto insistente da paisagem não sai nele dos moldes clássicos convencionais.
A expressão das situações e atitudes criadas pelo amor pouco adianta a um abstracto camonianismo. Apenas sobressai uma toada persistente de tristeza e pessimismo, que se torna mais comunicativa numa carta autobiográfica e em certos remates de soneto com sabor quase romântico, como aquele em que quer "ver esta noite durar tanto/que nunca mais amanhecesse o dia", aqueloutro em que deseja "fartar o pensamento de saudade", ou ainda essoutro em que enumera uma série de ambientes sombrios, concluindo que, a realizarem-se todos, "nem então me fartara de tristeza".
Sob o ponto de vista ideológico, quer o abade de Jazente, quer Xavier de Matos são espíritos do Século das Luzes, apesar da condição sacerdotal daquele e da dependência áulica do último, que não o impediu de participar na crítica à nobreza de sangue e de ser denunciado como desrespeitador da religião.
Convém notar que, por ordem cronológica, as tendências realistas de Paulino António Cabral devem preceder as de Garção e de Cruz e Silva, ambos mais novos e, nesse particular, mais hesitantes; e que Xavier de Matos, mais ou menos contemporâneo dos três principais poetas da Arcádia, e um tanto afim de Reis Quita em certos tons de morbidez melancólica, se destaca hoje por ter feito ressaltar os topos sentimentais e tenebrosos, e, neste sentido, o pré-romantismo já inerente ao lirismo e ao bucolismo de Quinhentos e Seiscentos.
2002 Porto Editora
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