Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819), mais conhecido pelo pseudónimo arcádico de Filinto Elísio, foi, apesar de dissidente da Arcádia Lusitana durante o tempo em que ela existiu, o seu mais combativo continuador em plena alvorada romântica.
Nascido de gente simples do mar e da praia, Francisco Manuel do Nascimento pôde fazer estudos e receber ordens sacras graças à ajuda de um embarcadiço mais categorizado. Entra depois num círculo de comerciantes ilustrados, alguns dos quais franceses, que muito devem ter contribuído para a sua formação enciclopedista e liberal. É deste tempo a guerra dos poetas que, por simples despeitos pessoais, opôs à Arcádia o chamado Grupo da Ribeira das Naus, a que pertencia; e foi então professor de D. Leonor de Almeida, futura marquesa de Alorna, a quem deve o pseudónimo arcádico, e da irmã, D. Maria de Almeida, que muito cortejou em verso. Depois da Viradeira, surpreendido por uma denúncia à Inquisição em que a própria mãe participou por pressão do confessionário, consegue iludir os esbirros com extraordinário sangue-frio e, graças ao auxílio de amigos franceses, embarcar para França, juntamente com Avelar Brotero.
Tirante um intervalo de quatro anos na Haia, viveu o resto da vida em Paris, na convivência de poucos amigos cultos, um dos quais foi o poeta Lamartine, que lhe dedicou um poema. À medida que os anos passam, as relações de amizade vão escasseando, o desconforto e o desespero crescem em torno da sua velhice. Vive de algumas lições, não parando nunca de escrever, para fazer dinheiro, para consolar-se, para combater em prol da estética horaciana, do casticismo de um idioma que então já mal ouve falar, dos problemas da Pátria distante perante os rumos abertos pelas revoluções americana e francesa.
O classicismo arcádico que Filinto Elísio serviu como último paladino harmonizava-se com a simbologia e os gostos neoclássicos da Revolução. O fundo ideológico de tal estética é visível em muitos passos. Exemplifiquemos com o verso em que exalta os Franceses que "escravos ontem, são hoje romanos".
Como diversos viajantes que no seu tempo conheceram Portugal, incluindo Beckford (cujo temperamento mórbido se comprazia precisamente com as sobrevivências barrocas da vida portuguesa), Filinto Elísio considera a sua Pátria ("Elísia") um atoleiro de superstição de carácter oriental; atribui toda a decadência aos "naires" da aristocracia, aos "bonzos" do clero regular, aos "talapões" e "dervizes" da alta jerarquia eclesiástica, aos "Busíris de loba", ou seja, os inquisidores, assim comparados a um facinoroso faraó - gente, toda essa, que mantinha a população e o "parvo rei" numa bárbara intolerância, numa crassa ignorância.
O estilo de Filinto Elísio é duro, trabalhado a golpes de cinzel e arcaizante. Os discursos doutrinários e as numerosíssimas notas que apõe como comentário às suas poesias consagram nele um dos prosadores clássicos mais enérgicos e cheios de recursos, embora demasiadamente apegado a certos processos que ele considera "quinhentistas", mas que são, em parte, seiscentistas, por exemplo, aos efeitos do hipérbato e à expressividade do vernaculismo vocabular.
Nas numerosas odes que escreveu e ainda noutros géneros mais coloquiais, como a epístola e a sátira, há muita vida directa e generosamente expressa e o amor fremente ao progresso pátrio. Mostra ao leitor, sem qualquer cerimónia, as suas angústias comezinhas, os dramas realmente vividos no quotidiano, os seus gostos francamente plebeus. A gente assiste, quase ano a ano, à festa do seu aniversário em 23 de Dezembro e à comemoração daquela data de 4 de Julho em que escapou aos esbirros, e sente-se a desolação que avança, dos seus sessenta anos para os setenta, destes para os oitenta, numa mansarda parisiense cada vez mais deserta, mais povoada de mortos, entre o crepitar mais escasso do lume e uma feijoada cada vez mais frugal.
A Pátria, a "Elísia" de Filinto é muito feita de Quinhentistas, de Camões, de heróis abstractamente cantados, à maneira arcádica, de um idioma amado com excessivo zelo purista, mas é também o seu grande tema de luta e ganha uma curiosa expressão material no apego gastronómico aos ovos-moles, às trouxas de ovos, ao arroz-doce, ao Colares, às morcelas, aos melões; concretiza-se também na rememoração de festanças populares ao ar livre e de uma hilariedade pagã.
Apesar do formalismo arcádico, sabe tornar flagrantes, como nenhum outro poeta do tempo, os ódios justos que o agitam, as aflições e tragédias de dinheiro, as quatro vezes que lhe roubaram uma biblioteca. Sentimos a generosidade com que, velho, atribuiu a primazia poética ao émulo Bocage; com que, batido, canta o Homem que refez a terra a partir da animalidade, dominou os raios de Júpiter e abrange o passado e o futuro pela Razão. Consola um amigo preterido pela mulher amada (por sinal, D. Leonor de Almeida), mostrando como é movediça a estrutura do corpo humano e como, correspondentemente, é plástica, resistente a todos os reveses a psicologia mais sincera do ser humano.
E, contudo, este homem tão chãmente burguês que, "como tendeiro honrado", deitou contas ao que ganhou com os versos, achando "cada verso a meio real", conserva um certo culto aristocrático pela literatura em moldes horacianos, pretendendo preservar de bastardias afrancesadas a linguagem alatinada de Quinhentos; e detesta o vulgo que não preza a difícil arte da expressão empolgante e exacta. É um poeta atentamente letrado no seu discurso, embora estudadamente burguês e plebeu quanto aos temas e por vezes no léxico.
A sua longa e prolixa epístola Da arte poética portuguesa, dirigida a José Maria de Brito, escrita aos 82 anos, tem fórmulas brilhantes, mas, pelo insistente decalque de Horácio e Garção, revela que o culto da forma segundo padrões especificamente literários que se transmitem da Antiguidade até ao neoclassicismo, culto que voluntariamente deprecia a língua vulgar e coloquial, não fora ultrapassado pelo mestre final da poesia arcádica.
2002 Porto Editora
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