Sobre a pintura barroca, quais foram as suas conseqüencias? E quais suas principais obras e artistas?
Há 300 anos, em junho de 1698, quando o acampamento de Ouro Preto foi fundado no alto de um morro perdido na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, nada prenunciava seu glorioso futuro. O clima era sombrio, esmagado por muralhas de montanhas, e o arraial equilibrava-se sobre solo escorregadio. "A primeira coisa que se fazia ao criar uma cidade", disse à SUPER o historiador português Vitor Serrão, professor de História da Arte na Universidade de Lisboa, "era construir uma capela. A maior preocupação era não faltar igreja para as festas santas como o Natal."
E foi de capela em capela, cada vez mais próspero com a descoberta de vários depósitos de ouro nas imediações, que, em 1711, o povoado virou a Vila Rica do Ouro Preto, a capital do barroco - o estilo artístico exuberante que dominou a arquitetura, a pintura, a escultura, a literatura, a música, o mobilário, a ourivesaria e a mentalidade do país durante 100 anos. Tanto tempo que, para muitos historiadores, o barroco não só fundou a cultura brasileira, como continua a influenciá-la até hoje - apesar de ser o avesso das modas minimalistas pós-modernas. A idéia é apaixonante. E controversa, como você vai ver nesta reportagem.
O certo é que o barroco brasileiro está em alta. Cento e vinte mil pessoas já visitaram em São Paulo a exposição O Universo Mágico do Barroco, que reúne, pela primeira vez, 400 peças deslumbrantes do período colonial. O sucesso é tanto que a mostra foi prorrogada até 18 de outubro. Em maio, a Christie's de Londres, a mais famosa casa de leilões do mundo, vendeu, pelo preço recorde de 420 000 dólares, uma imagem de Nossa Senhora das Dores esculpida por Aleijadinho, o principal artista brasileiro do período. Quer dizer, se alguma vez o barroco esteve em declínio por aqui, ele agora está renascendo.
Artistas brasileiros reelaboraram, a seu gosto, o barroco português. As cores deste teto da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, pintado por Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), são muito mais vivas e quentes do que as encontradas em Portugal.
Ataíde desenhou as feições de sua companheira, a mulata Maria do Carmo Raimunda, no rosto de Nossa Senhora da Porciúncula. E, nos anjos, pôs os traços de seus filhos e de moleques de Vila Rica.
Aos pés da Virgem, repare o desconcertante anjo mulato, feio e aleijado, empunhando um cajado que ergue a santa aos céus. É o artista Antonio Francisco Lisboa, o genial Aleijadinho (1730-1814), amigo do pintor.
Os símbolos da fé revigorada
Ofuscar os sentidos. Afirmar o esplendor divino. Conquistar a alma e a imaginação com a exuberância da fé. Maravilhar. Extasiar. Ao recomendar novas diretrizes estéticas à Arte, os cardeais reunidos na última sessão do 19º Concílio Ecumênico da Igreja Católica Romana, em 1563, na cidade de Trento, na Itália, não estavam brincando. O Vaticano precisava reagir à expansão da Reforma protestante na Europa, iniciada por Lutero, na Alemanha, em 1517. O barroco - termo derivado da palavra espanhola barueco, que significa pérola irregular - foi um dos principais instrumentos de propaganda do movimento da Contra-Reforma. Não por acaso, um dos primeiros edifícios com decoração nesse estilo foi a Igreja de Jesus, em Roma, de 1575, construída para sediar a Companhia de Jesus, a ordem dos jesuítas, fundada para combater o protestantismo.
"A Igreja queria parecer moderna e não ultrapassada", explicou à SUPER o historiador Carlos José Aparecido, da Fundação do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, em Minas Gerais. "A pompa e a exuberância barrocas quebravam a linearidade e a rigidez dos estilos vigentes, o renascentista, harmônico e equilibrado, e o maneirista, superficial e artificioso. E impressionavam." Daí o seu apego à curva, ao movimento, ao drama, à decoração feérica e, paradoxalmente - em se tratando de uma arte religiosa -, à sensualidade.
O barroco foi uma reafirmação do poder da fé. Diante do protestantismo, que pregava austeridade e rigidez, o catolicismo reagiu alardeando a exaltação mística e o delírio dos sentidos. A vitória da emoção sobre a razão.
Atraso luso
O Concílio de Trento e suas idéias estéticas ajudaram os reis católicos a impor seu poder sobre os nobres locais e a consolidar as monarquias absolutas. Por isso, no século XVII, o período barroco por excelência na Europa, surgiram palácios monumentais e hiperdecorados, como o de Versailles (1655), na França, reafirmando a grandeza do Estado.
Mas Portugal já estava em decadência quando o barroco surgiu. Perdera importantes entrepostos comerciais e, em 1580, o próprio rei, d. Sebastião, morria em batalha, no Marrocos, sem deixar herdeiros. A tragédia redundou em outra, maior, quando as complicações dinásticas levaram à anexação das terras lusitanas pela Espanha. "Esse período, de 1580 a 1640", define o historiador Nicolau Sevcenko, professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo, "constitui o maior pesadelo da história portuguesa."
A perda de poder político e financeiro refletiu-se na cultura. É a época da "arte chã", que, na Arquitetura, produziu igrejas singelas, com torres quase como guaritas e interiores ornamentados em madeira talhada. "Uma vez que não havia mármore ou pedras nobres, como nos países ricos", explica Vitor Serrão, "a solução foi trabalhar com azulejo, madeira e painéis pintados". Só em 1640, com a reconquista da independência, o barroco português deslanchou, com quase um século de atraso.
Anjinhos
Os anjos meninos eram símbolos do amor divino
Atlantes e cariátides
Figuras míticas da Antigüidade, atlantes (homens) e cariátides (mulheres), serviam como suportes de colunas
Flores
São representações da beleza da alma e da fugacidade das coisas
O pelicano
Uma metáfora do amor materno. A ave bica a si própria para oferecer o sangue aos filhos
Conchas
Conchas de vieira e coquilles de saint-jacques, pregadas no peito, identificavam os peregrinos que iam ao santuário de Santiago de Compostela, na Espanha, no século XI
Espinhos
Os emaranhados ásperos lembravam a consciência da dor do pecado
Palmas
Os feixes de folhas sugeriam o triunfo de Jesus sobre o martírio
Cachos de uva
Ramos de videira e uvas evocavam o sangue de Cristo
Os três ciclos do barroco colonial
No Brasil, a ascensão do novo gênero artístico acompanhou a descoberta do ouro em Minas - a primeira corrida do ouro do Ocidente. Em cinqüenta anos, 600 000 portugueses emigraram para cá. Desses, calcula o historiador Jaelson Britan Trindade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de São Paulo, "pelo menos 800 eram artistas".
No final do século XVII, descontados os índios, a população brasileira de origem européia contava 40 000 habitantes. No fim do século XVIII, pulou para 1,5 milhão. Nas cidades litorâneas, sob maior influência da metrópole, o barroco foi mais português. Já no interior de Minas, isolado pela distância e pela precariedade das comunicações, ganharia cada vez mais características próprias.
Um século de evolução
Quando surgiu, em Salvador e em Recife, o estilo mudou o interior das igrejas, não o exterior. Nesse período inaugural, chamado de nacional português, as fachadas e plantas continuam retilíneas, mas, por dentro, os templos viraram suntuosas "cavernas douradas", com paredes e tetos inteiramente revestidos de madeira esculpida em alto ou baixo-relevo (a talha), e pinturas encaixadas em molduras (os caixotões). Os painéis que ficam atrás e acima do altar (os retábulos) apresentam colunas torcidas e decoração profusa. É o caso da Capela Dourada (1695), em Recife, da Igreja de São Francisco de Assis (1703), em Salvador, e da capela de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (1719), Minas Gerais.
A partir de 1730, nota-se uma mudança. É o período joanino, marcado pela gosto italiano do rei português, d. João V. As estátuas se integram à madeira dos retábulos e os caixotões desaparecem, substituídos por pinturas ilusionistas (que provocam ilusão de óptica), recobrindo o teto. A arquitetura adota linhas curvas, naves alongadas e torres circulares, como nas igrejas de Nossa Senhora da Conceição da Praia (1758), em Salvador, Nossa Senhora do Pilar (1734) e Nossa Senhora do Rosário (1750), ambas em Ouro Preto.
Outras mudanças cristalizam-se a partir de 1760, com o ciclo rococó. Aí, as fachadas tornam-se mais leves e audaciosas, com curvas e contra-curvas, elegantes torres redondas e portadas com relevo de pedra-sabão. Os ambientes são claros e arejados, e a luz natural enfatiza a ornamentação sobre fundos caiados de branco. Os templos projetados por Aleijadinho, como a Igreja de Nossa Senhora do Carmo (1766), em Ouro Preto, e a de São Francisco de Assis (1774), em São João del Rey, são obras-primas da época. "O interior dessas igrejas", diz Myriam Ribeiro de Oliveira, professora de História da Arte na Universidade Federal do Rio de Janeiro, "são verdadeiros poemas sinfônicos de luz e de cor".
Período nacional português (1700 -1730)
Todos os espaços disponíveis em paredes e tetos eram profusamente decorados.
O retábulo do altar, esculpido em madeira, formava uma verdadeira caverna dourada
A Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (MG), construída em 1719
Pintura em caixotões no teto da Igreja de Nossa Senhora da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador
Período joanino (1730 -1760)
O retábulo da Igreja de N. Senhora do Rosário, de Ouro Preto, ressalta a ornamentação das esculturas.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Sobre o Barroco.
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