(1527-1580)
Quando Gil Vicente encenava a derradeira peça (1536), já ia alto o decisivo processo histórico que levou o povo português a posições jamais alcançadas, antes ou depois: o Renascimento. Antecedeu-o e preparou-o um movimento de cultura que agitou as últimas décadas da Idade Média: o Humanismo, caracterizado pela descoberta dos monumentos culturais do mundo greco-latino, de modo particular as obras escritas, em todos os recantos do saber humano, e por uma concepção de vida centrada no conhecimento do homem, não de Deus.
A descoberta, decifração, tradução e anotação desse rico espólio de civilização e cultura, parcialmente esquecido ou confinado em conventos durante os séculos medievais, seguiu-se o desejo de fazer ressuscitar o espírito da Antiguidade Greco-Latina. Tal estado de coisas, ligado às comoções próprias do tempo (descobertas científicas, invenções, a Reforma luterana, etc.), veio a constituir-se no Renascimento.
As circunstâncias históricas e uma peculiar situação geográfica confiaram ao povo lusitano um papel de superior relevo na evolução do Renascimento. É que Portugal, através de alguns estudiosos e, particularmente, das descobertas marítimas, vai colaborar de modo directo e intenso no processo renascentista: letrados portugueses, como os Gouveias (André, António, Diogo), Aquiles Estaço, Aires Barbosa, e outros, disseminavam as novas ideias em universidades estrangeiras, entre elas a de Paris.
Todavia, foi o alargamento dos horizontes geográficos, com sua corte de consequências económicas e políticas, que conferiu ao povo português primacial importância histórica no período que vem desde os fins do século XV até meados do século XVI.
Com efeito, a descoberta do caminho marítimo para as Índias, empreendida em 1498 por Vasco da Gama, seguida pelo "achamento" do Brasil em 1500, cercou-se duma série de semelhantes e felizes cometimentos, que permitiram a Portugal gozar de momentânea mas intensa euforia, sobretudo enquanto reinou D. Manuel, entre 1495 e 1521:
conquista de Ormuz, em 1507, de Safira, em 1508, de Goa, em 1510, de Azamor, em 1513, a viagem de circum-navegação realizada por Fernão de Magalhães, em 1519-1520, etc. Sobrevém uma extraordinária prosperidade económica: Lisboa transforma-se em centro comercial de primeira importância; na Corte, impera um luxo desmedido, a Maioria acredita cegamente haver chegado Portugal a uma inalterável grandeza material.
Enfim, enganador e iludidor optimismo ufanista, que aos poucos se vai atenuando, até à derrocada final em Alcácer-Quibir, em 1578, quando morre D. Sebastião e o exército português se dobra, fragorosamente vencido, à malícia e ao poderio da cavalaria sarracena.
A actividade literária reflecte essa atmosfera de exaltação épica e desafogo financeiro que cruza as primeiras décadas do século XVI, mas não deixa de reflectir também o desalento dos lúcidos perante a dúbia e provisória superioridade (a fala do Velho do Restelo e o epílogo d’ Os Lusíadas constituem índices do pensamento duma minoria consciente do perigo que ameaçava a Pátria).
Foi no ímpeto revolucionário da Renascença, e como desenvolvimento natural do Humanismo, que o Classicismo invadiu as consciências, pois correspondia literariamente ao geral e efémero complexo de superioridade histórica. Ao teocentrismo medieval vai opor-se uma concepção antropocêntrica do mundo, em que o "homem é a medida de todas as coisas", no redivivo dizer de Protágoras.
Ao teologismo de antes contrapõe-se o paganismo, fruto duma sensação de pleno gozo da existência, provocada pela vitória do homem sobre a Natureza e seus "assombramentos": não mais a volúpia de ascender para as alturas, mas sim de estender o olhar até os confins da Terra. O saber concreto, "científico" e objectivo, tende a valorizar-se em detrimento do abstracto; notável avanço opera-se no campo das ciências experimentais; a mitologia greco-latina, esvaziada de significado, passa a funcionar apenas como símbolo ou ornamento; em suma: o humano prevalece ao divino.
Em 1527, depois de ausente seis anos, Sá de Miranda regressa da Itália, onde contactara com estudiosos peninsulares impregnados das novas ideias, levando algumas delas para Portugal. Introduziu, ou colaborou para introduzir o verso decassílabo, o terceto, o soneto, a epístola, a elegia, a canção, a ode, a oitava, a écloga, a comédia clássica (escreveu Os Estrangeiros em 1526). Tornou-se o principal divulgador do Classicismo, mas o papel de teórico do movimento coube a António Ferreira, mais adiante referido.
Estando o solo preparado desde há muito, pouco demorou para alcançar pleno êxito o empenho de Sá de Miranda em atingir os espíritos com as novidades estéticas de origem italiana. Desse modo, os ideais clássicos predominam em Portugal até à morte de Camões e à passagem de Portugal para o domínio espanhol, em 1580. (Podia-se dizer que vigoram até o século XVIII, sob formas diversas, paralelas, quando não antagónicas ou incongruentes.)
O Classicismo consistia, antes de tudo, numa concepção de arte baseada na imitação dos clássicos gregos e latinos, considerados modelos de suma perfeição estética.
Imitar não significava copiar, mas sim a procura de criar obras de arte segundo as fórmulas, as medidas, empregadas pelos antigos. Daí a observância de regras, estabelecidas como verdadeiras antes da elaboração da obra literária: os escritores não tinham mais que observá-las, acrescentando-lhes a força do seu talento pessoal. Eram regras apriorísticas, mas não impediam o despertar e a manifestação das qualidades peculiares de cada um.
As demais características decorrem dessa obediência a regras e modelos pré-estabelecidos. A arte clássica é racionalista por excelência: "Haja a Razão lugar, seja entendida", como afirma António Ferreira (Carta X, a D. Simão da Silveira).
O racionalismo clássico não significa de modo algum ausência de emoção e sentimento, apenas pressupõe que a Razão exerça sobre eles uma espécie de controle, de policiamento, a fim de evitar que se derramem. Estabelece-se, ou deseja-se, um equilíbrio entre Razão e imaginação, no afã de criar uma arte universal e impessoal. Todavia, a universalidade e a impessoalidade implicavam uma concepção absolutista de arte: esta, deveria expressar verdades eternas e superiores, na medida em que se aproximassem dos arquétipos aceites, quer dizer, os modelos greco-latinos.
Daí vem que os clássicos renascentistas (a rigor, são neoclássicos) procurem a Beleza, o Bem e a Verdade, com maiúsculas iniciais, em virtude dessa concepção absolutista e idealista de arte. Percebe-se por isso que os clássicos atribuíam à arte objectivos éticos, identificados com o Bem e a Verdade. Embora não entendessem que a arte fosse utilitariamente empregada para fins de instrução moral - o que seria rebaixar-lhe a categoria -, estavam longe de aceitar a "arte pela arte" ao modo parnasiano (fins do século XIX). Um alto objectivo ético - o do aperfeiçoamento do homem na contemplação das paixões humanas postas em arte (a catársis dos gregos) -, é o que tencionavam alcançar com suas obras.
Isso tudo significava conferir à inteligência um superior papel na compreensão do Cosmos: o clássico quer-se intelectual antes de sensitivo, com a inteligência voltada para fora de si, para o Cosmos, e não para dentro, na escavação do próprio "eu".
O clássico procura entender a impressionante harmonia do Universo, e dela participar, utilizando o único meio possível para isso, a Razão ou- a inteligência. É a estética do Cosmos, em contraposição à do romântico, - que, como se verá na altura própria, defendia uma arte que lhe exprimisse o microcosmos, quer dizer, o seu "eu" interior.
Constitui natural corolário o culto extremado da forma: os clássicos são formalistas, no duplo sentido de aceitarem os modelos pré-estabelecidos e de valorizarem a suprema per-feição formal em prosa e em poesia: logicidade na ordenação do pensamento, limpeza e vernaculidade gramatical, rigor no que toca ao ritmo, à cesura, à estrofação, à ordem interna do poema, etc. Imitam-se os torneios sintácticos dos antigos, mas sem perder de vista o carácter próprio da Língua: numa espécie de "defesa e ilustração da Língua Portuguesa", os clássicos preconizam ardorosamente a pureza da linguagem. Como diz António Ferreira, na Carta III, a Pero de Andrade Caminha: "Floresça, fale, cante, ouça-se, e viva./ A Portuguesa língua, e já onde for/ Senhora vá de si soberba, e altiva."
Para melhor compreensão da época clássica em Portugal, é preciso levar em conta que, em paralelo com a cultura europeia do tempo, o espírito medieval não foi totalmente abando-nado. Em contrário. sisa presença se faz sentir de modo patente, lado a lado com as novas ideias: o século XVI português constitui uma época bifronte, justamente pela coexistência e não raro interinfluência das duas formas de cultura, a medieval e a clássica. Do ângulo da expressão poética, a primeira seria a "medida velha", e a segunda, a "medida nova". Tal bifrontismo é lugar-comum nos escritores quinhentistas portugueses, cujas aparentes contradições só podem ser entendidas quando se considera a ambivalência cultural da época.
Explica-se a dualidade quinhentista do seguinte modo: para alguns homens, moldados dentro do espírito medieval ainda vigente, não era fácil aceitar de pronto e integralmente a nova moda.
Em consequência, só lhes restava a tentativa de assimilar o novo ao velho, for-mando um rosto de dupla face: uma, olha para o passado medieval, outra, para o clássico, fundindo-o com a atmosfera trazida pelas descobertas e pelas invenções. Doutro modo, não se compreende como a novela de cavalaria, medieval por excelência, tenha alcançado seu ápice e tivesse sido cultivada com apaixonante interesse precisamente no século XVI.
Mais ainda: as notas medievais quinhentistas contem um impulso que se tornará presente, subterrâneamente ou não, ao longo de toda a Literatura Portuguesa, cruzando os séculos e fazendo-se tradição. Ao correr das épocas e períodos literários, o lirismo tradicional, caracterizado por ser antimetafísico, popular, sentimental e individualista, dialogará sempre com as novas modas, e sobreviverá: a própria força da terra Portuguesa, chamando os escritores para o seu convívio, explica a permanência desse remoto lirismo no curso dos séculos.
As novas "formas" literárias introduzidas pelo Classicismo logo foram aceites, entre outras razões porque, sendo notadamente poéticas, vinham corresponder às mais íntimas preocupações do português letrado quinhentista. De qualquer modo, vá-se fixando desde já que as formulações poéticas são fácil e espontaneamente assimiladas pelo português, ao passo que as novidades da prosa romanesca custam a deitar raízes fundas e produzir obras de imediato e relevante sentido. Entende-se, assim, que a época do Classicismo apresente um grupo notável de poetas, encimado por Luís Vaz de Camões, e que a poesia se coloque à frente das outras manifestações literárias coevas, muito embora estas, em sua específica área de acção e interesse, hajam atingido por vezes nível de primeira grandeza.
Aliás, diga-se de passagem, os teóricos antigos (como Aristóteles e sua Poética, e Horácio e sua Epístola aos Pisões) autorizavam e estimulavam o ardor posto na criação de poesia, fazendo em suas doutrinas tábua rasa da prosa, por considerá-la menos nobre que a poesia.
Decorre disso que o Classicismo português se abre e fecha com um poeta: Sá de Miranda e Camões. Numa visão de conjunto, este último é o grande poeta, enquanto os demais se colocam em plano inferior, naturalmente ofuscados pelo seu brilho. A explicação do facto reside na circunstância de que todos eles eram poetas de menor talento e de haverem tomado muito ao pé da letra os postulados clássicos.
Imitaram, copiaram os antigos friamente, sem acrescentar-lhes novidades nascidas da experiência ou dos privilégios pessoais, sensibilidade, inteligência, etc. Faltava-lhes o sopro mágico que ilumina a aceitação dos axiomas estéticos; por isso, carecem de grandeza suas criações. Estas, reduzem-se a exercícios de arte (= eloquência) a que está faltando o engenho (= talento): a reunião de ambas resulta bem, mas a primeira sem a segunda consiste no trabalho artesanal destituído de "inspiração".
De passagem, lembre-se de que Camões conta com sua ajuda no prólogo d’Os Lusíadas ("Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me ajudar engenho e arte"), pois conhece que ambos devem estar indissoluvelmente associados para que o intento poético alcance vingar. Os poetas menores do tempo agarraram-se às regras clássicas como se bastasse conhecê-las e aplicá-las para conseguir criar arte. Careciam de compreender que os cânones deviam ser usados apenas como meio de expressão de sua mundividência (necessariamente existente na base de todo artista, peque-no ou grande), e não como válidos por si próprios.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Editora Cultrix, São Paulo
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